
Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Em continuidade com a história
Dir-se-ia haver, de alguma forma, um retorno às origens na perspetiva integral das cooperativas. Como recorda João Salazar Leite, antigo dirigente da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), acerca do passado e presente do cooperativismo português, «num cadinho em que mutualismo, associacionismo, sindicalismo, cooperativismo ainda não tinham as respetivas fronteiras clarificadas, as primeiras cooperativas portuguesas foram polivalentes». E aponta o exemplo da «Sociedade Cooperativa e Caixa Económica do Porto, criada em 1871, [que] abarcava o consumo, o crédito, a edificação de casas para os sócios, a aquisição de matérias-primas para as indústrias dos sócios, a comercialização dos bens produzidos» 1.
Coube a Portugal a segunda lei cooperativa mundial em 1867, 15 anos depois da inglesa. Desenvolveu-se o cooperativismo, entre finais do séc. XIX e a primeira República (1910-1926), a par das organizações associativas de trabalhadores, maioritariamente constituídas por associações de socorros mútuos. É invocado um socialismo cooperativista com raízes no movimento mutualista e operário e na sua cultura popular e de classe. Sobressaem como meios de auxílio social as cooperativas de consumo, que em 1920 eram cerca de 200.
O Estado Novo (1933-1974) interrompeu de forma violenta o percurso associativo e cooperativo, transfigurando-os num regime autoritário. Como refere Álvaro Garrido «os “estados novos” salazarista e franquista instituíram sistemas corporativistas de assistência social» colocando sob a sua égide as mutualidades laborais e as cooperativas culturais de consumo e de produção. No lugar de ambos «colocou um modelo assistencialista de protecção social subordinado à sua lógica arbitrária, paternalista e antidemocrática – a previdência corporativa» 2.
Será ainda assim, nesse apertado controle do regime, que algumas cooperativas constituem espaços de resistência. Os socialistas «dissolvem-se» nas cooperativas a partir dos anos 1930, estratégia seguida a partir de meados do século por outros opositores ao regime. Emerge a figura de António Sérgio, que, conforme sintetizou João Salazar Leite, via no objetivo final dos cooperativistas «a criação de um sector cooperativo “apertadamente entretecido” na sociedade, tão completo que tornasse possível, a todo aquele que o desejasse, viver em regime socialista». Cooperativas de consumo, como a Unicoope a partir de 1955, são um encapotado espaço de resistência para socialistas, anarquistas e republicanos, sem o peso dos comunistas, numa resistência «de mercearia» – sem desprimor – ao fascismo.
Chegamos ao 25 de Abril e, seguindo João Salazar Leite, «existiriam 950 cooperativas em Portugal, 401 agrícolas, 132 de crédito agrícola, 193 de consumo, 40 de habitação, 10 de produção operária e outras 174 em várias outras atividades. Rapidamente o número viria a quadruplicar, tendo-se mantido sempre em torno das 3000» até à década de 1980. É o tempo renovado das cooperativas agrícolas ligadas à Reforma Agrária, cooperativas operárias, de pesca, de serviços, cultura, ensino ou de habitação e, claro, as dos consumidores. Será igualmente o tempo da intensa partidarização das cooperativas. Sobram, à margem, alguns projetos autónomos como foi o caso da Comunal de Árgea (1975-1977), uma cooperativa agrícola numa pequena localidade do concelho de Torres Novas.
As vivências das cooperativas nascidas com a revolução de 1974 preenchem o imaginário histórico de boa parte dos novos e velhos cooperantes, além de preencherem as estantes dos alfarrabistas. É, porém, a reação a esse legado que suscita, em parte, a emergência das novas roupagens do cooperativismo de que aqui falamos. Estas aspiram confrontar o elevado grau de institucionalização das cooperativas, a partidarização e verticalização do sector – pese embora isso permaneça para muitos como sinal de vitória democrática – assim como a sua diluição, depois dos anos quentes da revolução, numa mera lógica de mercado sob o epíteto da economia social. Um desfecho timidamente assumido como uma derrota.
A constituição de 1976 legitimara um «sector cooperativo e social», coexistindo enquanto um dos três sectores de propriedade dos meios de produção, a par do sector público e do privado. Nele estão incluídas as cooperativas, os meios de produção comunitários e as entidades de natureza mutualista (solidariedade social). Em 2009, com o surgimento da CASES enquanto instância reguladora, é consolidada a chancela do Estado sobre as cooperativas. Perante o slogan do «Estado Social» e com a chegada de diretrizes europeias sobre a Economia Social, alastra, como cita Álvaro Garrido, uma estratégia em que a «aliança entre o Estado e as organizações da economia social é crucial face à sua capacidade de desenvolver, no interior das economias de mercado, redes de solidariedade, dinâmicas e espaços de resolução de problemas, numa base de proximidade, revitalizando novos modelos de interação entre o Estado, a sociedade civil organizada e o mercado».
A vivência das cooperativas nascidas com a revolução de 1974 preenchem o imaginário histórico de boa parte dos novos e velhos cooperantes
Estatizado o perfil das cooperativas nestes termos, elas são enquadradas pela Lei de Bases para a Economia Social de 2013 e pelo Código Cooperativo de 2015, abarcando os princípios cooperativos elencados desde os anos 30 do século XX pela Aliança Cooperativa Internacional, mas imerso na institucionalização difusa da Economia Social e incluindo novidades controversas como o novo estatuto de «membros investidores». Se para Rui Namorado esta é um espaço onde «não domina a lógica capitalista do lucro» 3, já Álvaro Garrido alerta que a Economia Social «vai muito além do campo dos socialismos e evidencia uma plasticidade organizativa considerável, o que talvez explique a sua lendária resiliência (…) nos múltiplos contextos de interacção que estabeleceu dentro do sistema capitalista».
É deste cenário que resultará uma perspectiva crítica da Economia Social sob o conceito de Economia Solidária, que Álvaro Garrido enuncia como menos instituinte e mais aberta às práticas que emanam dos movimentos sociais e populares. Em Portugal, a economia solidária surge ainda no final dos anos 1980 na Macaronésia, e conta hoje com a dinamização institucional da Cresaçor, Cooperativa Regional de Economia Solidária dos Açores, criada no ano 2000. Quinze anos mais tarde, em 2015, é criada a Rede Portuguesa de Economia Solidária 4 que se assume como «uma via autónoma relativamente à corrente histórica da Economia Social, que, entretanto, se fora afastando de alguns dos princípios originais, em função dos compromissos assumidos com o Estado Social e da concorrência que teve de suportar com a economia mercantil». Em busca do desenvolvimento local e da descentralização, contrapõe-se uma economia alternativa «assente no princípio da reciprocidade, na cooperação e na partilha, numa visão substantiva (ou seja, integrada e enraizada na sociedade e na Natureza e nas suas relações e vivências) e na produção de valores de uso». É neste fio histórico que chegamos às cooperativas integrais de hoje.
Texto de Filipe Nunes, Filipe Olival e Sandra Faustino
Fotografias de redecoopintegral.org
Artigo publicado no JornalMapa, edição #36, Dezembro 2022|Fevereiro 2023.
Notas:
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