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Lendo: As vozes ocultas

As vozes ocultas

As vozes ocultas


Entrevista ao colectivo da Livraria/Biblioteca das Insurgentes, uma livraria itinerante com base na Sirigaita, em Lisboa, dedicada aos feminismos e à divulgação de livros escritos por mulheres e por todes es oprimides pelo sistema cis-heteropatriarcal.

Quando e como surgiu a vontade de criar a Livraria das Insurgentes, e que outros projectos serviram de referência para começar?

Até ao ano passado, em Lisboa, não havia uma livraria de género como há, por exemplo, em Roma, a livraria Tuba (desde 2007) e a Antigone (desde 2022); em Madrid, a Librería Mujeres (desde 1983); ou a Prolég, em Barcelona (também já com 30 anos).

Assim, em Fevereiro de 2021, finalmente, e com um atraso de mais ou menos 25 anos, sentimos que, em Lisboa, fazia falta um espaço como estes. Daí, e graças à Sirigaita apoiar e hospedar o projecto, nasceu a Livraria (e a Biblioteca) das Insurgentes e, como as nossas irmãs, temos nas estantes apenas livros escritos por não-homens hétero. Somos feministas e obviamente não acreditamos que a qualidade da produção intelectual esteja de alguma maneira ligada ao género. Mas é mantendo este foco que perseguimos justiça cósmica editorial e que queremos contrariar pela insurgência o dominante centralismo cis-heteropatriarcal (e branco e ocidental) que ainda hoje assombra pessoas, categoriza as suas produções e estereotipiza as narrativas em torno delas.

A nossa escolha é também pessoal: a falta de caracteres femininos de relevo foi muitas vezes razão para desistir de um livro ou de um filme. Por exemplo, As oito montanhas, de Paolo Cognetti é um texto muito bom que, em 2017, ganhou o Prémio Strega (prestigiosa distinção literária em Itália). O único grande desgosto que me deu esse livro foi a personagem de Lara, também a única mulher da história (excepto a mãe do protagonista, claro) e tanto namorada do protagonista quanto, a seguir, do seu melhor amigo. Nesta preciosa história, ninguém olhou para Lara com verdadeira curiosidade, nem houve espaço para saber o que ela desejou. Lara foi um mero peão ao serviço da uma escrita que só nos fala sobre um homem numa montanha, comendo queijo, com o seu amigo de infância. Tudo bem, mas, então, preferimos Brokeback Mountain, da Annie Proulx.

O auspício é claro: a todes nós que engolimos do mesmo veneno deste aparato social, esperamos que o nosso arquivo devolva a leveza e o prazer de ler e de se reconhecer nas experiências e resoluções des outres; que nos faça sentir que outros caminhos de luta, resistência e insurgência são possíveis; com a firme convicção de que qualquer caminho, antes de ser percorrido, terá sempre que ser imaginado.

Que actividades, para além da livraria, têm usado para visibilizar as autoras femininas e não-binárias no mercado editorial e conquistar o espaço que é predominantemente dominado por autores masculinos?

Com a criação da livraria e da biblioteca, surgiu também a urgência e a vontade de organizar actividades e eventos na nossa casa Sirigaita e em outros espaços. O evento organizado em colaboração com a Casa da Achada sobre escritoras ciganas é um exemplo destas actividades em que tencionamos dar maior visibilidade a autoras femininas e não-binárias. Olga Mariano, mediadora, poetisa e activista, esteve presente neste evento, apresentando o seu livro Pedaços de Mim.

Outra actividade significativa para o nosso projecto foi a visita guiada na feira do livro de Lisboa 2021 cujo tema foi “Vozes de escritoras africanas e afrodescendentes na feira do livro”. A intenção foi a de passear pela feira do livro à procura de autoras africanas e afro-descendentes. Voltamos a organizar esta visita guiada neste ano na feira do livro de Lisboa 2022, desta vez com um enfoque mais específico, o de procurar autoras africanas com um olhar mais politizado/feminista.

A colaboração com o colectivo Manas tornou-se um ponto essencial na existência do projecto das Insurgentes. Manas é um coletivo de mulheres que usam drogas, migrantes, trabalhadoras de sexo e/ou que vivem na rua, com trabalhos precários e dificuldalde de acesso a cuidados de saúde, um grupo que se reúne todas as semanas na Sirigaita, baseado na autogestão, no apoio mutuo e na sororidade. Com o colectivo Manas, organizamos workshops de escrita criativa com a poetisa e activista Chei. O resultado destes workshops será um conjunto de fanzines que contêm poesias escritas pelas mulheres do colectivo Manas: o primeiro fanzine, intitulado Sonho, sobrevivência, já está disponível. O evento que organizámos com o colectivo Vozes de Dentro, um grupo de apoio a pessoas presas, foi também uma actividade fundamental para a divulgação das cartas escritas por mulheres presas a denunciar a realidade obscurecida das prisões em Portugal.

De todas as vozes esquecidas e ocultas que se encontram no catálogo da livraria e da biblioteca, quais aquelas que recomendam como leitura indispensável para inspirar as insurgências do presente?

Imediatamente, sugerimos as mais recentes fanzines: Cartas insubmissas, editadas pelo colectivo Vozes de Dentro, em que testemunhamos desabafos, vivências e denúncias formais da vida de várias mulheres encarceradas em Portugal, dando voz a todas as pessoas que sofrem esta tortura quotidiana de privação de liberdade.

Tal como a primeira fanzine das PUETAS emPEDRADAS, Sonho, Sobrevivências, fruto de várias sessões de produção criativa colectiva, que levaram a poemas de uma profundidade a ser descoberta.

Ainda indispensável conhecer a poeta, artista, mediadora cultural, e parte de vários projectos culturais, Olga Mariano, que na sua reedição de PEDAÇOS DE MIM, pinta a cultura cigana na paisagem nacional, integrando-a no sistema educativo de todes es jovens.

São estas umas das obras que podíamos recomendar para pontapear preconceitos e estereótipos por contrariar.

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #35, Setembro|Novembro 2022.


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Jornal Mapa

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