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Lendo: Descolonização, Retornados e Descolonialidade

Descolonização, Retornados e Descolonialidade

Descolonização, Retornados e Descolonialidade


 

“Que a sorte é de quem

A terra amou”

Vitorino

“Ils sont venus d’abord en explorateurs
Ensuite en missionnaires
Après en colonisateurs, puis en coopérants.”
Tiken Jah Fakoly

Apesar do tema, que levanta mágoas, suspeitas e animosidade, este texto pretende revolver no período histórico contemporâneo da Descolonização com lucidez, sem cair nas malhas do politicamente correcto nem no maniqueísmo. Para estar em paz com o passado.

Guerra Colonial

Em 1961 anos o Portugal salazarista começava a guerra pela manutenção das colónias. Convém escrever que o regime do Estado Novo nunca reconheceu a existência de uma guerra, considerando que os movimentos independentistas eram apenas terroristas e que os territórios não eram colónias, mas províncias e parte integrante de Portugal.
Nas três frentes de guerra estavam, no terreno oposto ao exército português, o Partido Africano para Independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (PAIGC) na Guiné, a União do Povos de Angola (UPA) e mais tarde o Movimento de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) em Angola e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) em Moçambique.
A mobilização massiva de jovens para combaterem em África foi enorme, no início dos anos 70 Portugal era o quarto estado mais militarizado do mundo.
Apesar dos efectivos militares portugueses serem em maior número face às guerrilhas locais nas três guerras, existia uma superioridade política local e internacional que determinou o curso dos acontecimentos.
Apesar de alguma ilusão sobre a continuidade da presença portuguesa em África, o império desfez-se após o fim do Estado Novo no 25 de Abril de 1974 e quando as colónias adquiriram a independência.
Na Guiné, o PAIGC, depois de assassinado Amílcar Cabral, retrocedeu no seu projecto pós-colonial (talvez o mais avançado dos três movimentos de libertação africanos) e grande parte da ex-colónia sucumbiu a uma forte violência de manutenção do novo estado e a uma política de sobrevivência à custa de donativos internacionais.
Em Angola o MPLA estabeleceu o seu domínio e as diferenças entre as várias facções nacionalistas-tribais levaram a trinta anos de guerra civil.
Em Moçambique a FRELIMO reclamou o poder político sem passar por uma legitimação eleitoral e na sua direcção autoritária pelo progresso passou a considerar como inimigos a sociedade tradicional camponesa, as organizações religiosas e os antigos funcionários do aparelho colonial. O país também passou pela guerra civil.

25 de Abril e a Descolonização

A luta anticolonialista em Portugal foi tardia e apenas nos finais dos sessenta as esquerdas radicais e o PCP, assim como os movimentos que deram origem ao PS, assumiram uma atitude de entregar a independência aos povos que viviam nas colónias.
O lado trágico, negreiro e explorador dos descobrimentos, calado em Portugal, já se escutava na comunidade internacional e influenciou a juventude que era obrigada ao serviço militar, tanto por via das esquerdas como até pelo catolicismo.
No dia 25 de Abril de 1974 através do Movimento das Forças Armadas (MFA), levantou-se um período revolucionário que transformou o Estado e a sociedade portuguesa. Era fundamental para Portugal que existisse um cessar-fogo, um ponto final na guerra.
Num consenso pela descolonização, por parte das forças políticas que alcançaram o poder nesse período, ela foi considerada “exemplar”. A sua gestão, manifestada num dos 3 D’s (Democratizar, Descolonizar e Desenvolver), coube ao MFA, com apoio dos principais partidos políticos.
Entretanto, o império significava para a maioria dos portugueses um ideal, não um local real e as organizações políticas não tiveram capacidade de promover ligações com as populações dos países que estavam destinados a ser independentes.
O custo da descolonização mais visível foi o êxodo duma parte da população do ultramar, calcula-se que entre 1974 e 1979 entre 500 000 e 800 000 colonos portugueses abandonaram as suas residências em África, a maioria deslocando-se para Portugal (60% haviam nele nascido) mas também para a África do Sul, Venezuela e Brasil.
O repatriamento de população residente nas colónias foi comum a vários países europeus (França, Reino Unido, Itália, Bélgica e Holanda), a originalidade portuguesa foi o reduzido espaço temporal em que aconteceu.
Algumas razões do êxodo português foram a insegurança e a violência, a falta de bens essenciais, o medo da vingança por parte dos novos detentores do poder e uma situação política que dificultava a criação dos próprios partidos. Os estrangeiros residentes nas ex-colónias também foram aconselhados a abandonar esses países.
Para o regresso, o meio utilizado em larga escala foi o avião, com a criação de uma ponte aérea entre as antigas colónias e Portugal.

Tropas portuguesas abandonam quartel português no Norte de Angola. Foto de Luís Vasconcelos|Jornal Público.

IARN
O Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, criado em Março de 1975 e extinto em 1981, levou a que denominassem de Retornados a grande massa de desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados e refugiados que chegavam a Portugal continental e ilhas.
Em instâncias internacionais Aga Khan (Comissário da Agência das Nações Unidas para Refugiados) considerou que, como a maioria dos retornados possuíam nacionalidade portuguesa não eram refugiados.

Integração
No período 1974-79 Portugal passava por uma precária situação económica com problemas de habitação, emprego, saúde e ensino, onde também os militares desmobilizados se queixavam de falta de emprego.
Com algum sentimento de discriminação, a viver de forma precária na sociedade de acolhimento e com dificuldades em obter vínculos legais, os antigos colonos agitaram o país. Refira-se que cerca de 20 000 africanos de cor tiveram ainda mais dificuldade em serem aceites como cidadãos portugueses apesar de provirem do mesmo império colapsado.
O regresso dramático levou à ocupação de casas e bairros e à intervenção da Cruz Vermelha Portuguesa assim como de organizações humanitárias internacionais, também se criaram Associações para o problema dos espoliados das colónias, actualmente existindo tais organizações desde os anos ’80.
Passada a crise humanitária da chegada, os regressados fixaram-se nas localidades donde provinham e nas principais cidades de Portugal. Consistiam numa população jovem (63% tinham menos de 40 anos) e detinham qualificações superiores à média portuguesa.
Salienta-se que os retornados não se constituíram como uma força de reivindicação política ou como um movimento de afirmação de uma identidade distintiva e participaram, por vontade própria ou por resignação, num processo de ocultação, omitindo o seu percurso e a sua condição quer do espaço público, quer do espaço das suas sociabilidades quotidianas, apontando-se as razões da vergonha, pois Portugal refundava-se num ideário anticolonial e da perda (dos seus bens, da casa, da terra), assim como a sociedade portuguesa procurava esquecer o passado. Tudo resultou num silêncio, a chamada fractura colonial.
O rótulo de retornado como que conferiu à população descolonizada o peso de 500 anos de descobrimentos nas suas vertentes de esclavagismo e opressão e passou pela identificação dos seus sujeitos como colonialistas, racistas e fascistas. Apesar dum grupo social precarizado e frustrado pelo desleixo da política, não se verificou o apoio a movimentos políticos saudosistas do anterior regime, embora por intermédio de blogs e Facebook se notem mágoas e insultos aos políticos responsáveis pelo 25 de Abril.

Descolonialidade

Os processos de colonização europeus impuseram, pela destruição, exclusão, silenciamento e violência uma única geopolítica do conhecimento. A descolonização apenas significou a independência política formal dos estados colonizados.
O futuro do Ocidente de expansão planetária, de que Portugal fez parte desde o início, está estreitamente ligado ao mundo não-ocidental, a quem a modernidade europeia deve muito do seu esplendor e riqueza.
Os actuais fenómenos migratórios entre os, agora independentes, territórios coloniais e as suas metrópoles relacionam-se numa partilha e disputa de pós-memórias. Inscrevem-se neste tempo uma geração de artistas, intelectuais e activistas que se considera estarem “em trânsito” por uma transnacionalidade e uma consciência composta pela vivência na Europa e as suas origens coloniais, por vezes apenas familiares.
Ao recurso de narrar a História desde uma mitologia universalista, tanto a cultura como a política descolonial remexem actualmente pelo avesso da história combatendo os projetos de cristianização, colonização, civilização, modernização e desenvolvimento que configuraram as relações entre a Europa e suas colônias em termos de uma oposição nítida entre um Ocidente superior e seus outros inferiores
Através da mobilidade transcontinental e a difusão da informação e conhecimento pela internet, as identidades coletivas (re)constroem-se de formas inéditas através de uma articulação complexa de fontes de identificação ainda típicas, tais como a religião, territorialidade, raça, classe, etnicidade, género e nacionalidade, porém condicionadas por discursos universais de direitos humanos, leis internacionais, ecologia, feminismo, direitos culturais e outros meios de fazer respeitar as diferenças dentro da igualdade.
As diásporas pós-modernas colocam o estado-nação não como um local cultural homogéneo, mas plural, com uma localização subjetiva instrumental. Esbate-se a presença de exílios identitários e, simultaneamente, pátrios, pois a impossibilidade de identificação, quer com uma narrativa subjetiva que seja coerente, quer com uma pátria, evoca os hibridismos e intercâmbios culturais que sempre existiram e se prolongaram até ao presente pós-colonial.
Em Portugal, existe o conceito estatal da Lusofonia, que (consciente ou inconsciente) pode restabelecer a ideia da centralidade portuguesa; a reconstrução de narrativas do antigo império, o luso-tropicalismo e a ideia de colonização doce ou a narrativa de uma história do ressentimento.
Com a globalização, sofremos a vigência dum pensamento único, monocultural e que impõe a todos os povos e culturas um destino para a vida, para o mundo, para a educação e para as sociedades em geral. A descolonialidade remete para um espaço crítico complexo e perturbado, onde as rupturas se misturam com as continuidades, formando um objeto de difícil interpretação. No entanto, não se pode negar a sua existência nem a do fim do último Império Europeu, em direcção a um futuro no qual todos os seres humanos possam ocupar um lugar digno num planeta que todos compartilhamos provisoriamente.

 


Texto de Noé Alves [noe.alves1@gmail.com]

Fotografia [em destaque] de https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?lang=1&id=30328.
Legenda:A remoção da estátua de Mouzinho de Albuquerque, pouco antes da independência de Moçambique, em junho de 1975″.


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Jornal Mapa

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