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Lendo: A Civilização posta a descoberto

A Civilização posta a descoberto

A Civilização posta a descoberto


Em conversa com Júlio Henriques

Contra o Leviatã, Contra a Sua História, de Fredy Perlman, traça a longa história da Civilização e de como o processo civilizador destruiu as comunidades que haviam constituído a humanidade até ao advento das formas estatais.

Coube ao clássico livro de Fredy Perlman as honras da primeira edição dos Livros Flauta de Luz (distribuição da Antígona). Falámos com Júlio Henriques, o tradutor e escritor que edita anualmente a revista Flauta de Luz a partir dum recanto campestre entre Portalegre e Castelo de Vide. A edição foi feita em cumplicidade com Pedro Morais, o tradutor da mesma e que já antes havia traduzido de Perlman A reprodução da vida quotidiana e outros escritos (Textos Subterrâneos, 2015).

Para Júlio Henriques a escolha de Contra o Leviatã, Contra a Sua História resulta deste «corresponder a uma síntese da orientação geral da revista: uma visão crítica da História a partir da existência, na história humana, de comunidades não hierárquicas, consubstanciando, simultaneamente, a crítica do Estado (ou Leviatã) como instituição organizativa do todo social e como narrativa canónica censória daquilo que não são relações estatais.»

Fredy Perlman (1934-1985) radicado desde muito jovem nos Estados Unidos «é uma figura muito inspiradora». «Dissidente da universidade estado-unidense, levou a cabo, apesar da sua morte prematura aos 50 anos, um trabalho de grande fôlego na renovação do pensamento anarquista. De origem judaica, fugiu com os pais do seu país natal antes da invasão nazi da Checoslováquia. Teve desde criança uma vida atribulada, mas que lhe alargou horizontes. Exilados primeiramente na Bolívia, Fredy teve ali como segunda língua “materna” o espanhol e um primeiro conhecimento in loco das realidades indígenas americanas (o povo quíchua), que nele exercerão um impacto duradouro. Mudando-se depois para os Estados Unidos com os pais, aos onze anos, adquiriu ali uma terceira língua “materna”, implicando-se a breve trecho, como estudante, na acção política, em plena “caça às bruxas” movida pelo histérico nacionalismo estado-unidense contra a oposição de esquerda.»

Having little, being much (Ter pouco, ser muito)

«Fredy Perlman congrega na sua pessoa uma inspiração anarquista de ampla paleta: europeia, pela sua origem e pelas experiências que teve em Itália, em França (no Maio de 68) ou na Jugoslávia da “autogestão”; norte-americana, pelo anticolonialismo, baseado na apreensão das culturas ameríndias como a cultura clássica estado-unidense, pelo anti-industrialismo, assente numa visão radicalmente contestatária do capitalismo mais avançado e mais profundamente destruidor, e também pelas influências directas de anarquistas exilados nos Estados Unidos, nomeadamente espanhóis e italianos. Nessas múltiplas confluências da contestação, a sua vida foi exemplo de uma obstinada coerência, resumível no que poderia ser considerado o seu lema: Having little, being much (Ter pouco, ser muito)».

De acordo com Júlio Henriques «a actualidade de Contra o Leviatã, Contra a Sua História parece ser total, no sentido em que a visão crítica do autor adquiriu entretanto, desde a primeira publicação deste livro em 1983, uma maior abrangência. A noção que ele formula do capitalismo como doença, em parte inspirada numa visão ameríndia resultante do contacto com os invasores europeus, tornou-se entretanto mais presente e tem uma maior amplitude, dado que a patologização da vida quotidiana abarca aspectos cada vez mais amplos da existência humana (trabalho, vida familiar, práticas religiosas, lazeres, tempos livres, imaginários, criatividades). Neste livro, resultado de um estudo extenso que incluiu arqueologia, a primeira instância é o lugar ocupado pela História. A História que nos é transmitida desde o berço é a da superioridade dos impérios; e só esta é canónica, só esta pode estar presente. Disto resulta o notório imaginário de superioridade do que se convencionou chamar Civilização, com maiúscula, que na verdade se reduz, prosaicamente, à civilização capitalista, esta que nos obriga a interiorizar a mercadoria como única relação possível e realista, e, por conseguinte, a considerar legítima a existência de todas as relações como relações mercantis. Fredy Perlman traça a longa história da Civilização como a constituição do Estado e de todas as brutalidades e devastações que lhe são inerentes, das mais explícitas às mais recônditas e íntimas, pondo assim a nu as qualidades do chamado processo civilizador e os modos como este processo, para avançar, destruiu as comunidades que haviam constituído a humanidade até ao advento das formas estatais. A visão de Fredy Perlman revela assim em contraponto, pela sua exposição da História Dele (His-Story, ou seja, do Leviatã, do Estado, mas também do Patriarcado), aquilo que se tornou urgente e fundamental pensar nos nossos dias: a emergência de instituições não estatais, comunitárias, de dimensão humana, tendentes ao autogoverno, capazes de pôr em causa o tamanho incontrolavelmente faraónico das instituições vigentes e a concomitante alienação que as relações impostas pelo capital reproduzem».

 

 

 

 

 

 

 

Contra o Leviatã, Contra a Sua História
Fredy Perlman
Livros Flauta de Luz, 2021
352 páginas

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #32, Outubro|Dezembro 2021.


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Jornal Mapa

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