Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Variantes de um vírus mais insidioso
Há pouco mais de um mês, o rapper Estraca – de quem já falamos nesta rubrica – lançou “Jornalixo”. Na letra da música, Estraca visa o consenso podre que foi necessário alimentar para justificar muitas das medidas de gestão da pandemia e coloca em causa farmacêuticas, jornalistas e governantes, acusando-os de assassinos, ou cúmplices, e de manipularem a informação. A letra é leviana, falha o alvo repetidas vezes e abusa de uma série de tropos perigosos, a roçar o pior do populismo reaccionário (tal como já acontecia no single anterior, “Terra Nostra”), o que comprova que sempre que Estraca abandona a crónica da vida no subúrbio, e se põe a dissertar sobre política nacional, perde todo o interesse. O intuito apreciável de questionar o pior que esta pandemia nos trouxe perde-se no meio de uma caricatura transviada. A internet caiu-lhe rapidamente em cima e empurrou-o para o campo do “negacionismo”, uma barricada em que o próprio mergulhou com prazer, passando a integrar a horda de tarados que arrasta pela internet e a participar nas suas manifestações públicas. Em parte, a rapidez com que Estraca foi colado aos conspiracionistas explica-se por, numa das linhas da letra, estender o seu exercício crítico à vacinação, quando diz “eu sou louco/ E assumidamente louco/ Se loucura é questionar/ Aquilo que injetam no meu corpo”.
Sublinhe-se, porém, independentemente da qualidade da música e da mensagem, que o que o rapper tenta dizer sobre a pandemia não é o mais problemático. Mesmo nos versos atrás citados, não está uma declaração explicitamente negacionista, mas antes a afirmação de um exercício que devia ser básico: questionar. Pode-se ser vacinado e questionar a sua eficácia plena. É, aliás, tão salutar quanto a vacina que esse escrutínio não seja monopolizado por quem a produz e seja feito, também, por aqueles que a recebem. Não é segredo para ninguém que, para as farmacêuticas, a saúde pode ser sacrificada no altar do Deus Milhão quando assim é oportuno (basta recordar as patentes das vacinas). Lembremo-nos, além disso, que a vacina foi brandida como a chave da liberdade e não como algo que “apenas” permitiria “achatar a curva” e reduzir os casos graves, como passou a acontecer entretanto, como se sempre tivesse sido assim. Como bem sabemos, nem tudo mudou com a vacina e o anunciado “dia da liberdade” ainda continua por chegar: continuamos sujeitos ao medo e a restrições derivadas da ameaça pandémica, sejam elas justificadas ou não.
A reacção que Estraca recebeu remete-nos, portanto, para um problema bem mais profundo: a polarização perigosa, particularmente acentuada em Portugal, que cola automaticamente o selo de “negacionista” a quem se atreva a destoar do coro oficial – mediático e político – da pandemia. Para que fique claro: o “negacionismo” é um problema, mas é um problema porque nega a própria existência da pandemia, e as suas terríveis consequências, sem colocar devidamente em causa a forma como foi, e é, gerida politicamente; é um problema porque nega a vacinação com base em fantasias conspiracionistas, sem questionar eficazmente as condições materiais de produção dessas vacinas; é um problema porque, neste caso, tem sustentado uma noção perversa de liberdade, egoísta e fundada na atomização do indivíduo, consonante por isso com o neoliberalismo que por vezes aparenta desejar combater.
O que não é, nem pode ser, «negacionismo» é questionar a promiscuidade entre política e ciência, que serve para abençoar decisões governamentais com o selo «científico» e protegê-las com uma capa técnica e «neutra».
É um problema, enfim, porque, por todas estas razões, resvala para um eugenismo e segregacionismo que contrariam qualquer ideia de liberdade e de igualdade social e reproduzem o que há muito existia de pior no mundo. O que não é, nem pode ser, “negacionismo” é: questionar a promiscuidade entre política e entre ciência, que serve para abençoar decisões governamentais com o selo da “ciência” e protegê-las com uma capa técnica e “neutra”; denunciar o poder obscuro das farmacêuticas e a sua motivação puramente comercial; ou criticar a própria espetacularização da pandemia pelos média, a que assistimos desde o início, que fez dos usos políticos do medo uma nova forma de entretenimento.
A pandemia acentuou e iluminou tendências que já se manifestavam há muito tempo no mundo. E o caminho que seguíamos não era certamente o de quem procura um caminho emancipatório e deseja uma sociedade mais igualitária e livre. Quando hoje se diz que “nada voltará a ser como antes” sabemos que ninguém quer com isso dizer que as nossas condições de vida melhoraram. Não “vai ficar tudo bem” porque já estávamos longe de estar bem há muito tempo. E o que era passou a ser ainda mais: as desigualdades aumentaram, os ricos viram as suas fortunas crescer, a saúde tornou-se um negócio mais rentável, a nossa frágil saúde mental ficou reduzida a cacos, e os Estados reforçaram a sua capacidade de controlo e vigilância. O mundo continua a ser movido pelo dinheiro e pela ganância. E as “novas” possibilidades que se abriram são muito mais causas de alerta do que de optimismo quanto ao futuro, não estivesse a pandemia a servir como a desculpa perfeita para introduzir e intensificar novas formas de governação (que vão desde a banalização do uso de drones para vigilância pública até à massificação do próprio certificado digital). No fundo, assumir que quem nos levou a esse estado de coisas se tornou subitamente responsável e preocupado com o nosso bem-estar é, também, uma forma de “negacionismo”; e não é necessariamente menos perigoso que o “negacionismo” de quem nega a pandemia e as vacinas. Em ambos os casos, de resto, estamos perante a mesma perplexidade que nos persegue há séculos: por que é que a humanidade luta tão afincadamente pela servidão como se fosse a sua salvação?
Está na altura de deixar de entregar de bandeja qualquer exercício crítico da gestão da pandemia, ou de quem nos governa, àqueles que o fazem para reforçar o status quo e para promover soluções autoritárias em nome de uma suposta liberdade. O próprio conspiracionismo é o sintoma de um vírus maior e mais insidioso, prenhe de significado político, e não o resultado de uma disfunção cognitiva inexplicável, como sugere o termo “chalupas”. Se tudo o que temos para responder a quem desafia a nossa linguagem, e algumas das nossas convenções, é a sobranceria e o moralismo, deixamos o terreno livre para que seja a extrema-direita a apropriar-se de qualquer expressão embrionária de descontentamento. E, pior, o cenário distópico pós-pandémico, narrado pelo poeta Roger Robinson na faixa de abertura do último álbum de The Bug (“Fire”, um dos grandes lançamentos de 2021 e uma verdadeira banda-sonora para os tempos que vivemos), revela-se uma realidade mais próxima do que estamos dispostos a reconhecer: “after the fourth year of being cooped up/ we realized that there was no end to this” (in “The Fourth Day”).
Artigo publicado no JornalMapa, edição #33, Fevereiro|Abril 2022.
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