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Lendo: Há que violentar o sistema

Há que violentar o sistema

Há que violentar o sistema


Passavam apenas quatro anos da Revolução de Abril de 1974, e já havia quem quisesse mandar tudo abaixo. Em 1978, na primeira gravação Punk feita em Portugal, os Aqui D’el Rock lançavam o mote para violentar o sistema, «a coisa (…) que de tanto mudar continua igual» (in Há que violentar o sistema). Fundados num dos territórios mais miseráveis da cidade de Lisboa, o Bairro do Relógio, conhecido como Bairro do «Cambodja», os Aqui D’el Rock usavam a música para anunciar que, para muita gente, pouca coisa tinha mudado. Para além da persistência da pobreza, do desemprego e do tédio quotidiano, as possibilidades abertas pela revolução esbarravam no conservadorismo dos costumes. Mesmo a música, tão importante para a revolução e para o período que se lhe seguiu, insistia em continuar virada para dentro e indiferente às rupturas estéticas que explodiam noutros países. As formas de expressão cultural toleradas e domesticadas pelo regime ditatorial deram lugar a outro cânone, dominado pela música de intervenção e mais interessado em celebrar um certo povo e tradição do que em desbravar novos caminhos. Reflexo disso era a opinião de Zeca Afonso que, anos antes, criticava aqueles que importavam «música fabricada na Europa e na América» e considerava o Ié-Ié (o nome dado ao Rock em Portugal) um «ritual do chinfrim», «a expressão de um processo de decadência de uma sociedade» e «destituído de valores intelectuais».

Mais do que a pretensão de chocar os papás e os vizinhos, ou fazer carreira artística, a intenção era “violentar o sistema” pós-revolucionário que fazia do presente e do futuro uma miragem de promessas.

A democracia só lentamente se foi fazendo sentir na criação musical, especialmente nas áreas urbanas. Os instrumentos, e o tempo para aprender a dominá-los, eram um luxo acessível a poucos. E no Rock que se fazia em Portugal nos anos 70 predominavam as marcas de um certo elitismo que celebrava o virtuosismo. O próprio Punk desenvolve-se em Portugal pela mão dos «meninos-bem» da Avenida de Roma. É neste cenário que surge uma «pedrada no charco» chamada Aqui D’el Rock, tão distante dos «amanhãs que cantam» da revolução como do conforto da burguesia lisboeta. Contra o «sistema que nos querem meter pelos cornos abaixo» e contra um socialismo que não passava de uma «reformulação do sistema capitalista» (in Rock em Portugal, Maio/ Junho de 1978), Zé Serra (bateria), Fernando Gonçalves (baixo), Alfredo Pereira (guitarra) e Óscar Martins (guitarra e voz) pegavam em instrumentos em elevado estado de degradação, ou fabricados pelos próprios, e estreavam-se nos palcos em Abril de 1978. No mesmo ano gravavam o single Há que violentar o sistema, com o Lado B ocupado pela música Quero tudo, onde o vocalista Óscar cantava «sem vontade nem futuro». Em 1979, saía o segundo e último single da banda, Eu não sei. A capa já denunciava o desvio para a New Wave que se concretizaria pouco depois, com um grafismo mais colorido e o nome da banda em néon, mas a música era ainda mais imediata e directa do que no registo de estreia. Nas letras mantinha-se a mesma atitude: Eu não sei prometia «não deixar nenhum símbolo de pé» e em Dedicada (A quem nos rouba) a mensagem disparava «para quem nos rouba/ a quem nos rouba/ morre, morre se puderes/ morres, se um dia vier». Em 1981, em parte para escapar do estigma Punk, os Aqui D’el Rock davam lugar aos Mau-Mau e adoptavam uma sonoridade mais polida, desaparecendo definitivamente pouco tempo depois.

Tudo isto seria suficiente para celebrar a recente reedição destes singles, em formato LP, pela Zerowork Records – edição a que se junta um poster desdobrável com um texto do fundador Zé Serra, fotos ao vivo, a lista de todos os concertos da banda, uma das primeiras entrevistas que deram e, como não podia deixar de ser, as letras. Mas há mais motivos para aplaudir o gesto da Zerowork. Desde logo, porque o lugar dos Aqui D’el Rock na história da música portuguesa nem sempre mereceu o destaque devido. O seu lugar no panteão do Punk em Portugal é incontestável, mas a sua importância dilui-se na de outras bandas surgidas em simultâneo, e sem registos sonoros, como os Faíscas e os Minas & Armadilhas, cujos membros fizeram posteriormente carreira artística (p. ex. Pedro Ayres Magalhães) ou afirmaram com maior destaque a sua voz no espaço público (p. ex. Paulo Borges). Não fossem estes dois singles e, provavelmente, os Aqui D’el Rock ocupariam uma nota de rodapé ainda mais discreta. Pelo estatuto marginal que tinham na «movida» artística lisboeta então em ascensão, os betinhos da Avenida de Roma viam os Aqui D’el Rock, já na altura, como oportunistas, e, posteriormente, procurando firmar o seu pioneirismo, nunca deixaram de relativizar o estatuto Punk da banda do Bairro do «Cambodja». Para Rui Pregal da Cunha (Heróis do Mar, LX 90), o Punk nem tinha grande nexo num país recém-saído de uma revolução; era uma moda importada que rapidamente viria dar lugar a outra, tal como o percurso destes ilustres pioneiros demonstrava. Os Aqui D’el Rock, contudo, não foram atraídos para o Punk pelo aparato estético do estilo. Sem posses para viajar para os epicentros dos acontecimentos que abalavam a Europa ou para adquirir as novidades discográficas, o Punk dos Aqui D’el Rock não se afirmava pelas roupas certas e pelos alfinetes espetados na cara. Mais do que a pretensão de chocar os papás e os vizinhos ou fazer carreira artística, a intenção era «violentar o sistema» pós-revolucionário que fazia do presente e do futuro uma miragem de promessas. O guião, construíam-no eles próprios, conjugando a realidade que conheciam com os rumores dispersos que chegavam a este país à beira mar plantado.

Reafirmar o lugar dos Aqui D’el Rock na história do Punk em Portugal, tal como o faz a edição da Zerowork Records, é confrontar uma memória elitista da cultura portuguesa.

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #32, Outubro|Dezembro 2021.


Written by

Diogo Duarte

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