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Lendo: Barroso, terra que respira vida e semeia luta

Barroso, terra que respira vida e semeia luta

Barroso, terra que respira vida e semeia luta


As encostas verdes confundem-se com o azul dos céus, ouve-se o voo manso das aves de rapina, sente-se o cheiro das árvores em fruto. Depois de tantos quilómetros percorridos por entre estradas sinuosas, ei-la: Covas do Barroso. Estamos em pleno mês de agosto e a estação estival é particularmente dura nesta aldeia transmontana: o sol vai alto, o ar quente penetra os poros da pele, o vento seco ressequindo-a. Mas, apesar do calor, aqui, onde confluem os rios Covas e Couto, tudo respira vida. E respira luta também.

Chego para o Acampamento em Defesa do Barroso, uma iniciativa organizada pelas populações locais, em luta há três anos contra o maior projeto de mineração de lítio a céu aberto em solo europeu — Mina do Barroso Lithium Project, como lhe chama quem com ele quer lucrar: a multinacional Savannah Ressources. As gentes barrosãs, contam, para esta atividade, com o apoio da Greve Climática Estudantil, da Caravana Zapatista Pela Vida, da Cicloficina do Porto e dos meios de comunicação independentes Guilhotina.info, PtRevolutionTV e Jornal MAPA. Mas rapidamente percebem que a solidariedade se alastra muito para lá destes coletivos e muito além das fronteiras nacionais. Tal como eu, centenas ouviram soar o grito de alerta «Não à Mina, Sim à Vida!» e ao Barroso acorreram para defendê-lo. Atravessaram montes, vales, colinas, regiões, países, continentes. Barroso, território de luta onde várias geografias se misturam.

Durante cinco dias, mais de centena e meia de corpos construiu um espaço comunitário, autogerido e horizontal, onde o trabalho reprodutivo — desde a preparação das refeições à limpeza dos espaços — era repartido entre todas; onde se partilharam memórias, histórias e vivências; onde se trocaram conhecimentos, saberes e experiências.

Logo no primeiro dia, ouvimos as populações locais falar do seu modo de vida em estreita simbiose com a natureza. Começam por nos explicar como funciona o sistema de divisão das águas de rega, um sistema intergeracional e comunitário, através do qual a água é dividida pelos lameiros segundo uma ordem previamente estabelecida pelos diferentes ameiros segundo acordo prévio entre os diferentes proprietários. Este sistema, simbolicamente apelidado «torna da água», mostra bem como a água é considerada um «bem comum». Mas não só a água é gerida de forma comunal: também parte da terra está nas mãos da comunidade. Com efeito, em Covas, há cerca de 2.000 hectares de terrenos baldios, segundo a estimativa de Aida Fernandes, Presidente do Conselho Diretivo dos Baldios de Covas do Barroso. O baldio é um tipo de propriedade de cariz especificamente comunitária, cuja administração e propriedade são da responsabilidade dos compartes 1. Os baldios são, para Aida, «a parte mais importante nesta luta. A maioria destes projetos [de mineração] são em baldios.» Ora, a larga maioria — para não dizer a totalidade — do/as compartes de Covas está contra o projeto da mina de lítio, pelo que, embora o governo possa, segundo a Lei 2, expropriar os terrenos «por motivos de utilidade pública», a contestação popular não o facilitará. Afinal, aqui, onde a terra é de quem a trabalha, as gentes não se deixam comprar. Aida conta inclusive que, nos últimos tempos, cada vez mais pessoas afluem à Assembleia de Compartes, pois as decisões são tomadas exclusivamente por quem delas participa. Este espaço de decisão promove, assim, uma cidadania ativa, engajada, direta, onde é dada voz, espaço e cuidado a quem conhece e vive da terra.

Ora, esta terra — onde a água flui em abundância, a vista se perde no verde, e do solo fértil brota alimento para todas — encontra-se ameaçada: as elites políticas e económicas querem «esventrar» estes montes em busca de um mineral-chave para a transição energética: o lítio.

Covas do Barroso ilustra perfeitamente os paradoxos da transição energética europeia. Esta aldeia, onde as serras se cobrem de poejos e medronheiros, onde em cada canto se respira ar puro com cheirinho a hortelã-pimenta, e onde a noite pinta o céu de milhares de estrelas, está a ser transformada numa «zona de sacrifício verde»

Barroso, as serras do lítio tornado ouro

Em Dezembro de 2019, a Comissão Europeia anunciou a sua nova estratégia de crescimento — o Pacto Ecológico Europeu (PEE). O PEE procura «encaminhar a Europa para um processo de transformação numa sociedade justa e próspera, com impacto neutro no clima e dotada de uma economia moderna, eficiente em termos de recursos e competitiva», lê-se no website oficial. No ano seguinte, os chefes de Estado europeus comprometeram-se a reduzir em pelo menos 55% as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) até 2030, com o objetivo de atingir a neutralidade carbónica até 2050.

Ora, para abolir os combustíveis fósseis, a UE tem de apostar em fontes de energia alternativas. Entre elas, o lítio aparece como prioritário — há mesmo quem lhe chame o «novo ouro”/ «ouro branco” ou ainda o «petróleo branco». Em Setembro de 2020, a UE adicionou este mineral à sua lista de matérias-primas críticas e o Vice-Presidente da Comissão Europeia, Maroš Šefčovič, anunciou que seriam necessárias «18 vezes mais lítio até 2030 e 60 vezes mais até 2050» para efeitos de armazenamento de energia e, sobretudo, para alimentar os automóveis elétricos, que a Eurelectric prevê serem 40 milhões em circulação nas estradas europeias nos próximos 9 anos. Foi assim — de rompante e silenciosamente — que esta rocha branca inundou as narrativas políticas e os mercados financeiros, tornando-se um dos minerais mais cobiçados por todo o mundo.

O lítio — concebido como um elemento estratégico de preservação da soberania energética europeia (e, consequentemente, como prioridade securitária) — é imaginado pelo governo português como uma oportunidade de colocar o país numa posição de liderança dentro da UE. Entre 2016 e 2019, o governo autorizou requerimentos para prospecção e pesquisa de minerais em 19,3% do seu território. Volvidos cinco anos do início das prospecções, hoje, em 2021, o início da exploração mineira de lítio avança a passos largos. E é em Covas do Barroso que se inicia esta jornada.

Nos montes que servem de pasto às ovelhas, cabras e vacas, a multinacional britânica Savannah Ressources quer criar a primeira mina a céu aberto de lítio da Europa. O projeto da Savannah prevê a construção de várias minas a céu aberto (uma delas com 600 metros de comprimento, 500 de largura e 150 de profundidade) que se estenderiam por uma área de 542 hectares, sendo que no Estudo de Impacte Ambiental (EIA) se antecipa a sua ampliação para 594ha.

Barroso

Barroso, uma «zona de sacrifício verde»

A concretizar-se, a mina despojaria esta aldeia da sua atual e histórica identidade pastoril, silvícola e agrícola. Em 2017, o Barroso foi coroado com o prestigiado selo «Património Agrícola Mundial», atribuído pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Esta distinção reconhece a importância das práticas ancestrais de cultivo das terras e de tratamento do gado: é este modo de trabalhar que faz desta região uma das regiões com maior biodiversidade do país e que lhe tem garantido uma maior resiliência face às alterações climáticas. O selo da FAO é também uma confirmação daquilo que as populações e aliadas têm vindo a gritar nos últimos três anos: «o Barroso é que é verde!». Com efeito, por muito que as elites políticas pintem de verde os projetos de mineração, inventando termos como green mining, dificilmente se pode ignorar a previsível destruição sócio-ambiental trazida por uma mina a céu aberto de um tamanho equivalente a quase 600 campos de futebol.

Nesse sentido, Covas do Barroso ilustra perfeitamente os paradoxos da transição energética europeia. Esta aldeia, onde as serras se cobrem de poejos e medronheiros, onde em cada canto se respira ar puro com cheirinho a hortelã-pimenta, e onde a noite pinta o céu de milhares de estrelas, está a ser transformada numa «zona de sacrifício verde». «Zonas de sacrifício» são aqueles lugares que não contam, que podem ser envenenados, esventrados, empobrecidos, em nome do progresso e do desenvolvimento capitalistas. Mais que uma «zona de sacrifício», o Barroso tornou-se numa «zona de sacrifício verde», isto é, um território cuja pilhagem, exploração e destruição são justificadas em nome da transição energética “verde” que os nossos governos desejam e fomentam.

A narrativa hegemónica do capitalismo extractivista «verde» chegou, pois, a um ponto de contradição interna brutal. Contam-nos: para deixar de poluir, há que necessariamente esventrar o Norte de Portugal (e todos os territórios onde há lítio). Sossegam-nos: as minas serão todas elas «verdes», isto é, ecologicamente responsáveis. Mas a fábula do green mining não passa disso mesmo: uma fábula. Uma fábula absurda: «como se pode justificar a destruição de patrimónios biodiversos em nome do combate às alterações climáticas?»

Ao mesmo tempo, a retórica oficial — focada exclusivamente na emissão de GEE, sobretudo de dióxido de carbono (CO2) — ignora os muitos outros problemas ecológicos que nos assolam. Ignora a sexta extinção em massa em curso, a desflorestação e desmatamento contínuos, ou ainda o esvaziamento e a plastificação dos oceanos, assim como as monoculturas mortíferas que proliferam mundo-afora. A narrativa CO2-cêntrica da «transição energética», ao menosprezar todos estes outros problemas, cria igualmente a falsa ilusão de que podemos resolver a crise ecológica tratando de um sintoma apenas.

É por isso que a «transição energética» em curso não constitui «transição» nenhuma: não atacando a «raiz» da crise, não será possível transitar para um outro modelo de organização política, económica e social. Pelo contrário: a forma como o processo de descarbonização da sociedade e da economia está a ser levado a cabo reproduz as mesmas visões e estruturas de poder que criaram e agravaram as crises ecológica, ambiental, social e política que atravessamos. Esta foi uma «transição» planeada e dirigida de cima para baixo, não auscultando as populações nem respeitando as vozes e corpos que estão na linha da frente (do sacrifício); baseia-se na destruição da Natureza e na espoliação dos territórios, privando as populações locais do seu sustento e destruindo biodiversidade regenerativa; permite que as elites económicas e financeiras continuem a lucrar desenfreadamente à custa da exploração dos corpos-territórios humanos e não-humanos; e ainda mantém o mesmo modelo de circulação, baseado na mobilidade individual e sustentado pelo apelo consumista. De facto, uma transição energética sem uma redução drástica nos níveis de energia apenas resultará num aumento da necessidade de extração, transformação e transporte de matérias primas e de bens de consumo — precisamente os agentes da destruição massiva de ecossistemas. Em suma: de nenhuma «transição» se trata quando são as mesmas elites político-económicas a decidir do seu rumo e a lucrar com ela, mantendo as populações e os seus territórios numa posição subalterna e dependente, e perpetuando a destruição da vida.

Barroso

Barroso, palco de lutas por futuros-de-vida

O futuro de minas-a-céu-aberto-e-carros-elétricos-individuais é movido pela força crua, mecânica, acelerada e tecnocientífica do capitalismo predatório extrativista. Foi este mesmo modelo de «fazer-e-pensar-mundo» que nos trouxe até aqui. Por isso, perante níveis de destruição socioecológica crescentes e face à profunda crise existencial que atravessamos, urge adotar outros ritmos-paisagens-tempos. Ritmos que nos envolvam-com-a-terra, dela cuidando e com ela aprendendo. Ritmos lentos, regenerativos, participativos, horizontais. Ritmos de Vida.

Estes ritmos-de-vida baseiam-se em visões alternativas do futuro — um futuro comum, solidário, harmonioso, cuidador, participativo, convidativo, igualitário. Ritmos de vida que se aproximem daquele passado comunitário que ainda susbiste em muitas zonas do nosso interior, tão abandonado pelo Estado, como é o caso de Covas do Barroso. Onde esse passado foi apagado, de Norte a Sul do país, as populações têm vindo a organizar-se para criar essas alternativas — desde quintas agroecológicas a comunidades regenerativas, passando por assembleias populares, cooperativas ou cozinhas comunitárias. De Norte a Sul, em todos os territórios ameaçados pelos ritmos-de-morte, as populações têm-se unido para lutar por ritmos-de-vida. Em Covas do Barroso, as populações, com as mulheres na linha da frente, resistem há séculos à marcha predatória da agricultura intensiva, sobrevivem há décadas ao desinvestimento estatal e lutam há anos contra o avanço do capitalismo extrativista.

Esta luta, os locais sabem-no, é internacional. Por mais que os poderes governativos e mediáticos tentem deslegitimar e estigmatizar os movimentos, dizendo que as populações não se insurgiriam caso o megaprojeto mineiro fosse proposto numa outra parte do globo, as populações locais tecem redes de apoio e solidariedade internacionais e reconhecem a importância da crítica e da ação sistémicas. O Acampamento, por exemplo, bem o refletiu, tendo permitido que pessoas de diferentes geografias se encontrassem para partilhar as suas experiências de luta contra a mineração. Numa das noites, por exemplo, dezenas de habitantes de Covas juntaram-se na praça principal da aldeia, o Largo do Cruzeiro, para ouvir uma mensagem de solidariedade vinda diretamente do Atlântico Sul, de um companheiro da coordenação nacional (Brasil) do Movimento Sem Terra (MST), que relembrou: «Nós estamos enfrentando o sistema capitalista e toda essa lógica destrutiva que impede a emancipação dos seres humanos e da natureza. Nós do MST, deste território de luta, dizemos: Não às Minas, Sim às Vidas! Internacionalizemos a luta, internacionalizemos a esperança!»

Por todo o mundo, as soluções semeiam-se: é preciso cultivá-las. Cultivar redes de solidariedade internacional — ancoradas em práticas locais — é o que nos permitirá construir outros futuros, abandonando este sistema, doentio e caduco, que tudo explora, dizima e consome, e abraçando um novo, ao serviço e em simbiose com as pessoas e a natureza. Em Covas do Barroso, este futuro é parte do quotidiano e as populações não abdicarão dele. Como canta Carlos Libo (nome artístico de Carlos Gomes Gonçalves, apicultor local), na sua canção Exploração, «tua terra dá fartura / sustento pro ano inteiro / a alegria de quem vive em Barroso / não se compra com dinheiro». As gentes barrosãs sabem que, se é para haver futuro, ele será «verde» — o «verde» da natureza, de quem dela vive, e de quem dela cuida. Esse «verde» que é de todos os feitios – é fruto, é flor, é serra, é gado, mas não é mineração!

 


Texto de  Mariana Riquito – Investigadora Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). Ecofeminista anticapitalista. Acredita que outros mundos, mais justos, são possíveis.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #32, Outubro|Dezembro 2021.


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Notas:

  1. Os «compartes» são os titulares dos baldios. São compartes todo/as o/as cidadã/os com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas Comunidades Locais, podendo também ser atribuída pela Assembleia de Compartes a qualidade de compartes a cidadãos não residentes.
  2. A Lei nº 68/93 de 4 de Setembro que rege os baldios foi alterada pela Lei nº 89/97 de 30 de Julho e pela Lei nº 72/2014 de 2 de Setembro.

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Jornal Mapa

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