
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Como pão para a boca
De um dia para o outro, a vida confinada e de vizinhança resultou no melhor dos argumentos à demonstração da nossa perda de autonomia alimentar, quando a jusante estamos dependentes dos circuitos alimentares agroindustriais e das grandes cadeias comerciais. Ou a montante, quando a política agrícola e florestal portuguesa está comprometida por extensas monoculturas que garantem lucros rápidos e números vistosos nas balanças comerciais, arriscando prateleiras vazias de produtos alimentares básicos.
Em contraponto, surgem os grupos de produção e consumo implicados com práticas agroalimentares justas e solidárias. Uma das respostas surge em torno das AMAP (Associações para a Manutenção da Agricultura de Proximidade) e CSA (Comunidades que Sustentam a Agricultura). O modelo praticado baseia-se no compromisso mútuo entre produtores e coprodutores (consumidores) por forma a viabilizar a prática da Agroecologia, tratar o alimento como um bem comum e valorizar o relacionamento pessoal. Como tem vindo a ser referido por Sara Moreira na rubrica Utopias Concretas em anteriores edições do Jornal MAPA, «entendido como bem-comum e não como mercadoria, o alimento é aqui o elemento cultural primordial a proteger e cuidar – desde a semente até ao prato – pelo seu papel central na própria vida e no funcionamento das sociedades e da economia. Este entendimento implica uma transformação radical da organização dos sistemas alimentares aos quais nos habituámos e das relações sociais que sustentam o bem-comum, no que toca a partilha de responsabilidade nos processos de produção, consumo e distribuição.»
Proximidade em tempos de distanciamento social
Este modelo implica uma perspetiva não capitalista da alimentação, mas não é uma miragem: pode e já funciona no dia-a-dia. As AMAP do Porto, Famalicão, Vila Nova de Gaia, Guimarães, Palmela, Sado e Alvalade e a CSA Partilhar as Colheitas da Herdade do Freixo-do-Meio, Montemor-o-Novo, membros da REGENERAR – Rede Portuguesa de Agroecologia Solidária, declararam a 8 de abril a importância de «cultivar a proximidade em tempos de distanciamento social». Em comunicado, partilharam «a angústia sentida por muitos pela possibilidade de vir a faltar comida» e «o medo de frequentar os locais de consumo de massas» pelo que «para podermos concentrar-nos nos cuidados (agora redobrados) que a terra exige, não podemos viver atarantados com a gestão de solicitações desenfreadas. Precisamos de planeamento, de proximidade, de compromisso e de empatia. Nas AMAP/CSA, foi sempre esta a ética que nos guiou para cumprirmos o dever que sentimos de providenciar alimentos de qualidade. Por isso não distinguimos entre consumidores e produtores: somos todos co-produtores. E para nós é isto que está na base da soberania alimentar.»
Para este grupo de agricultores, «a crise do vírus corona tem posto a descoberto aquilo que já muitos de nós sabíamos: o atual sistema económico não é sustentável, e isso fica patente quando nos vemos obrigados a pensar como funciona o fornecimento agroalimentar». Cientes de que a realidade de muitos agricultores, dependentes do grande retalho e de circuitos longos de distribuição, pode nestes cenários «levar a situações trágicas no escoamento, e consequentemente no acesso ao pão que (n)os alimenta. Com a proibição das feiras e mercados, e com os limites à circulação, há que reinventar todo o circuito de distribuição de forma a torná-lo mais local, mais próximo e resiliente. É nesses processos longos, continuados, de convergência de pessoas comuns comprometidas, que a agricultura de proximidade pode afirmar-se em termos de soberania alimentar.»
Alimentação em curto-circuito
A Carta de Princípios das AMAP assenta em três princípios basilares: o alimento como bem-comum; a relação de escala humana e a agroecologia – esta última tornada imperiosa como elemento de Saúde Pública: «não se pode falar de alimentação saudável enquanto produzida de forma perturbadora do funcionamento dos ecossistemas». Esses princípios diluem-se ou estão mesmo ausentes no atual quadro institucional e no mercado em Portugal dos «circuitos curtos». Um modelo essencialmente focado na valorização meramente mercantil do alimento local e sem a dimensão coletiva e compromissos partilhados entre consumidores e produtores. Uma distinta abordagem, com diversos tipos de iniciativas agregadas, que têm vindo igualmente a beneficiar do atual “despertar” da alimentação de proximidade.
Ana Paula Xavier, da Direção da Federação Minha Terra, que junta 58 Associações de Desenvolvimento Local (ADL), reforçava em comunicado, igualmente nos inícios de abril, a aposta nesses Circuitos Curtos Agroalimentares e nos Sistemas Alimentares Locais. Simultaneamente, o Ministério da Agricultura aprovava um conjunto de medidas excecionais e temporárias relativas à epidemia do coronavírus no âmbito da operação «Cadeias Curtas e Mercados Locais» da Medida LEADER do PDR 2020, com o objetivo de «promover e agilizar os canais de comercialização de produtos alimentares locais, alargando as possibilidades de escoamento da produção previstas na operação» e lançava a iniciativa «Alimente quem o Alimenta» uma plataforma agregadora para a compra e venda de produtos agroalimentares.
Como notou Ana Paula Xavier, «algumas iniciativas com vários anos de atividade, como o projeto PROVE – entrega de cabazes de hortofrutícolas – registam uma procura sem precedentes», exemplificando ainda com o caso dos «cabritos disponibilizados pela ANCRAS – Associação Nacional de Caprinicultores da Raça, [que] numa mensagem desesperada, esgotaram em menos de 24 horas». A alimentação de proximidade, pela crise que atravessamos, ganhou efetivamente «mais visibilidade e premência», o que para a Federação Minha Terra «perspetiva, num futuro próximo, uma “normalidade” que pretendemos diferente e uma atitude mais cidadã, sustentável e justa em relação à alimentação.»
«as fragilidades da globalização alimentar tornaram-se mais visíveis no contexto desta pandemia»
Um pouco por todo o país, perante os testemunhos de desespero com a interdição dos mercados e feiras semanais, foram reforçadas as redes de contactos através da divulgação de listas de produtores locais e dias de entregas diretas, algo que tem sido feito por diversas ADL, como a In Loco na serra algarvia, por grupos informais como a Caravana Agroecológica, com uma listagem de produtores na zona de Lisboa. Há listas partilhadas nas redes sociais ou em fóruns de discussão, como na plataforma nacional Alimentar Cidades Sustentáveis, um coletivo constituído atualmente por 350 membros oriundos dos mais variados territórios e setores alimentares e que lançou este ano o E-book “Alimentar Boas Práticas – Da Produção ao Consumo Sustentável”.
Igual aumento de procura assistiu-se na loja da Cooperativa Minga de Montemor-o-Novo, apesar dos horários reduzidos de abertura, com encomendas online para cooperantes e para a população mais idosa do concelho. Alguns cooperantes organizaram-se ainda para ir buscar os produtos aos produtores de mais idade, de forma a protegê-los. Enquanto organização de cooperativismo integral, a Minga, que atua em diversas áreas sociais e económicas do seu território, tem vindo a demonstrar a eficácia de uma economia solidária através do consumo local e com responsabilidade social e ambiental. Em 2019, a Minga, com 50 cooperantes, 12 trabalhadores e 15 micro e pequenos produtores e várias marcas associadas, teve uma faturação de bens agrícolas de 42.000€ resultante de vendas em loja, mercado municipal e abastecimento de duas cantinas escolares, e faturação anual de 300.000€, mais que duplicando a do ano anterior. Números que não pretendem traduzir, e menos ainda valorizar, uma promoção permanente desse índice de crescimento económico, uma vez que a cooperativa se identifica com a perspetiva do Decrescimento e reivindica como primazia o bem-estar coletivo.
«Os políticos é no discurso, nós é na prática»
A perspetiva de um antes e um depois do coronavírus, levou a que no dia mundial da Luta Camponesa, 17 de abril, a ACTUAR – Associação para a Cooperação e o Desenvolvimento e parceiros do «projeto Alimentação é Direito!» tenha dado início ao ciclo de «conversas@mesa: intercâmbios internacionais sobre o sistema alimentar pós covid-19». O projeto (2018-2024) é parte do programa CidadãosAtiv@s, financiado com 11 milhões de euros pela Islândia, Liechtenstein e Noruega, e gerido pelas fundações Calouste Gulbenkian e Bissaya Barreto. Quanto ao mote das videoconversas, o facto de os «limites e as fragilidades da globalização alimentar tornaram-se mais visíveis no contexto desta pandemia» e estando o futuro do sistema alimentar em debate, «os 3,7 milhões de pessoas em risco de pobreza em Portugal serão seguramente as principais vítimas desta pandemia, o que exige uma resposta consequente para promover sistemas alimentares sustentáveis.».
Sendo este tipo de iniciativas direcionado a «fortalecer as capacidades da sociedade civil para que possa influenciar de forma efetiva a geração de mudanças ao nível institucional e legal, e no quadro orçamental e de políticas públicas», as conclusões dessa primeira conversa («A agricultura familiar na encruzilhada viral») acentuaram apenas como a agricultura familiar está a mitigar os efeitos da crise sanitária» apesar da «profunda crise que já atravessava, reclamando a oportunidade para a implementação de «políticas públicas consistentes e adequadas de apoio a este sub-setor e de aposta no desenvolvimento de compras públicas de alimentos à agricultura familiar».
Já no espaço físico e com as mãos na terra, Joana e Manu, da associação algarvia Caldeira Negra, contaram ao Jornal MAPA (no âmbito da série #PandemiaSolidária) como efetivamente «está-se a inverter a lógica de importar e a tentar apostar na produção local. Os políticos é no discurso, nós é na prática. É um fenómeno muito forte: a situação está-se a inverter. Os produtores neste momento estão a escoar tudo, as pessoas estão a consumir imensos legumes e muito mais produtos locais. E as listas ajudaram. Muitas pessoas se dão conta de que enfiar-se num supermercado é uma loucura e descobrem como é melhor comprar diretamente aos produtores. Quando vais a uma quinta estás num espaço aberto, dão-te o teu cabaz, podes falar à distância à vontade, é muito mais saudável, seguro e sensato do que as medidas governamentais.» O que se passou na verdade «foi uma grande revolta. Não fazia sentido fecharem o mercado e deixarem as pessoas sem alternativa. Não só porque muitos de nós íamos ter dificuldades financeiras, mas também porque nos supermercados as pessoas têm mais hipóteses de ser contaminadas. Estes continuavam a funcionar sem se usar luvas ou máscaras. É uma loucura: as multinacionais e grandes superfícies vendem a gente apavorada, os mercados ao ar livre de apoio aos pequenos fecham… muitos produtores ficaram em situações muito más. Sobretudo os mais idosos. Para além do medo de serem contaminados, têm dificuldade em comunicar com o exterior, usar internet, comunicar moradas…»
Perante as restrições impostas o food truck da Caldeira Negra deixou de estacionar semanalmente no Mercado de Levante, em Lagos, mas tal serviu de oportunidade para lançarem mãos à construção de uma nova rede «Portugal Regional – open food network», com residentes portugueses e estrangeiros de todo o sudoeste algarvio, para dinamizar compras diretas a produtoras e produtores. E têm em mente algo mais que uma mera transação comercial: «estamos interessados em que isto seja um passo para criar uma base de dados de troca de serviços e bens para, no caso de a economia colapsar completamente, termos uma forma de solidariedade e de intercâmbio entre as pessoas».
Nos nossos campos e nos nossos pratos, tornou-se hoje mais evidente − para uma grande parte da população − o papel essencial destes grupos de produção e consumo na generalização uma alimentação de proximidade, com responsabilidade solidária e ambiental. Como referia em finais de abril o CIDAC, Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral em Lisboa, pioneiro em Portugal do movimento do comércio justo, a economia solidária, a «gestão coletiva e o enraizamento nos territórios, promovidos por grande parte destas iniciativas, fazem ainda mais sentido nesta conjuntura de crise que é multidimensional.» Precisamos delas como pão para a boca.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #27, Maio|Julho 2020.
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