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Lendo: O olhar e a distância da porta

O olhar e a distância da porta

O olhar e a distância da porta


Os/as/oas Zapatistas estão entre nós. Sim já o estavam, mas agora vieram à Europa de baixo para aprender e aprendermos. «Claro, também para dançar» sabendo-nos «dispost@s a arriscar tudo, tudo.» Disseram-no ao mundo em 1994, nas sombras do tempo desde sempre, e agora em 2021 estão entre nós para falarmos juntos da «nossa vida colectiva». Intergalácticos haviam-no já dito. Neste excerto da quinta parte (outubro de 2020) da Declaração pela Vida que prenunciou a sua vinda ecoa essa possibilidade. Partilhando lutas, sonhos e loucuras. O impensável que construindo, aqui está. Nestes meses iremos poder falar com eles/as/oas aqui e ali nas montanhas, vales e nos bairros também deste canto do mundo português.

Suponhamos que é possível escolher, por exemplo, o olhar. Suponhamos que podes libertar-te, nem que seja por um momento, da tirania das redes sociais, que impõem não só aquilo que vês e aquilo de que falas, mas também como ver e como falar. Então, suponhamos que ergues o teu olhar. Mais acima: do imediato ao local, ao regional, ao nacional, ao mundial. Vês? Certo, um caos, uma confusão, uma desordem. Então suponhamos que és um ser humano; ou seja, que não és uma aplicação digital que rapidamente olha, classifica, hierarquiza, julga e sanciona. Então escolhes o que olhar… e como olhar. É possível, é uma suposição, que olhar e julgar não sejam a mesma coisa. Assim, não só escolhes como também decides. Mudar a pergunta de “Isso é errado ou certo?” para “O que é isso?”. Claro, a primeira questão leva a um debate saboroso (ainda há debates?). E daí para o “Isso é errado – ou certo – porque eu o digo”. Ou talvez haja uma discussão sobre o que é o certo e o errado, e daí para os argumentos e citações com notas de rodapé. Certo, tens razão, isso é melhor do que recorrer a “gostos” e “polegares para cima”, mas eu propus-te mudar o ponto de partida: escolher o destino do teu olhar.

Por exemplo: decides olhar para os muçulmanos. Podes escolher, por exemplo, entre aqueles que perpetraram o ataque contra o Charlie Hebdo ou entre quem marcha agora nas estradas de França para reivindicar, exigir, impor os seus direitos. Já que chegaste a estas linhas, é muito provável que escolhas os “sans papiers”. É claro que também te sentes obrigado a declarar que Macron é um imbecil. Mas, pondo de lado esse rápido olhar para cima, voltas a olhar as concentrações, acampamentos e marchas de migrantes. Interrogas-te sobre o seu número. Parecem-te muitos, ou poucos, ou demasiados, ou suficientes. Passaste da identidade religiosa à quantidade. E então perguntas-te o que querem, por que lutam. E aqui decides se recorres aos meios de comunicação e às redes para o saber… ou se os escutas. Supõe que lhes podes perguntar. Perguntas-lhes qual a sua crença religiosa, quantos são? Ou perguntas porque abandonaram a sua terra e decidiram chegar a terras e céus que têm outra língua, outra cultura, outras leis, outro jeito? Talvez te respondam com uma única palavra: guerra. Ou talvez te pormenorizem o que essa palavra significa na sua realidade. Guerra. Decides investigar: guerra onde? Ou, melhor ainda, porquê esta guerra? Então atormentam-te com explicações: crenças religiosas, disputas territoriais, pilhagem de recursos ou, pura e simplesmente, estupidez. Mas não te conformas e perguntas quem beneficia com a destruição, o despovoamento, a reconstrução, o repovoamento. Encontras os dados de várias empresas. Investigas as empresas e descobres que estão em vários países e que fabricam não só armas, mas também carros, foguetes interestelares, fornos microondas, distribuidoras, bancos, redes sociais, “conteúdo mediático”, vestuário, telemóveis e computadores, calçado, alimentos orgânicos e não orgânicos, companhias de navegação, vendas on-line, comboios, chefes de governo e gabinetes, centros de investigação científica e não científica, cadeias de hotéis e restaurantes, “fast food”, companhias aéreas, centrais termoeléctricas e, claro, fundações de ajuda “humanitária”. Poderias dizer, então, que a responsabilidade é da humanidade ou do mundo inteiro.

Mas perguntas-te se o mundo ou a humanidade não são também responsáveis por essa marcha, por essa vigília, por esse acampamento de migrantes, por essa resistência. E então chegas à conclusão que pode ser, é provável, talvez seja todo um sistema o responsável. Um sistema que produz e reproduz a dor, a quem a inflige e a quem a sofre.

Agora, volta o olhar para a marcha que percorre os caminhos de França. Supõe que são poucos, muito poucos, que é apenas uma mulher a carregar o seu cachopo. Importam-te agora a sua crença religiosa, a sua língua, a sua roupa, a sua cultura, o seu jeito? Importa-te que seja apenas uma mulher que carrega o seu cachopo nos braços? Agora esquece a mulher por um momento e concentra o teu olhar apenas na criatura. Importa se é menino, menina ou outroa? A sua cor de pele? Talvez descubras, agora, que o que importa é a sua vida.

Agora, vai mais além, afinal de contas conseguiste chegar até estas linhas, por isso mais algumas não te farão mal. Ok, não muito.

Supõe que essa mulher fala contigo e que tens o privilégio de compreender o que ela te diga. Achas que te vai exigir que lhe peças perdão pela cor da tua pele, a tua crença religiosa ou não, a tua nacionalidade, os teus antepassados, a tua língua, o teu género, o teu jeito? Apressas-te a pedir-lhe perdão por seres quem és? Esperas que ela te perdoe e possas regressar à tua vida com essa conta saldada? Ou que ela não te perdoe e digas a ti próprio: “Bem, pelo menos tentei e estou sinceramente arrependido de ser quem sou”?

Ou temes que não te fale, que apenas olhe para ti em silêncio, e sintas que esse olhar te pergunta: “E tu, quê?”?

Se chegas a este raciocínio-sentimento-angústia-desespero, então, sinto muito, não tens remédio: és um ser humano.

Tendo ficado claro que não és um bot, repete o exercício na Ilha de Lesbos; no Rochedo de Gibraltar; no Canal da Mancha; em Nápoles; no rio Suchiate; no rio Bravo.

zapatistas

Agora move o teu olhar e procura a Palestina, o Curdistão, Euskadi e Wallmapu. Sim, eu sei, causa tonturas… e não é tudo. Mas, nesses lugares, há quem (muitos ou poucos ou demasiados ou suficientes) também lute pela vida. Mas acontece que concebem a vida inseparavelmente ligada à sua terra, à sua língua, à sua cultura, ao seu jeito. Àquilo que o Congresso Nacional Indígena nos ensinou a chamar “território”, e que não é apenas um pedaço de terra. Não sentes a tentação de pedir a estas pessoas que te contem a sua história, a sua luta, os seus sonhos? Sim, eu sei, talvez seja melhor para ti recorrer à Wikipédia, mas não te tenta o escutá-lo directamente e tentar compreendê-lo?

Regressa agora ao que está entre os rios Bravo e Suchiate. Aproxima-te de um local chamado “Morelos”. Olha com novos olhos o município de Temoac. Foca agora a comunidade de Amilcingo. Vês aquela casa? É a casa de um homem que em vida teve o nome de Samir Flores Soberanes. Em frente daquela porta foi assassinado. O seu crime? Opor-se a um megaprojecto que representa morte para a vida das comunidades a que pertence. Não, não me enganei na redacção: Samir é assassinado não por defender a sua vida individual, mas por defender a vida das suas comunidades.

Mais ainda: Samir foi assassinado por defender a vida de gerações que ainda nem sequer foram pensadas. Porque para Samir, para as suas companheiras e companheiros, para os povos originários agrupados no CNI, e para todas, todos, todoas nós, zapatistas, a vida da comunidade não é algo que acontece apenas no presente. É, sobretudo, o que virá. A vida da comunidade é algo que se constrói hoje, mas para o amanhã. A vida na comunidade é algo que se herda. Achas que a conta fica saldada se os assassinos – o intelectual e o material – pedirem perdão? Achas que a sua família, a sua organização, o CNI, nós, nos conformaremos com que peçam perdão os criminosos? “Perdoem-me, eu indiquei-o para que os sicários o executassem, sempre tive a língua solta. Tratarei de me corrigir, ou não. Já vos pedi perdão, agora retirem o vosso protesto daqui e vamos terminar a central termoeléctrica, porque senão vai perder-se muito dinheiro”. Achas que é isso que esperam, que esperamos, que é por isso que lutam, que lutamos? Para que peçam perdão? Que declarem “desculpem, sim, assassinámos Samir e, já agora, com este projecto assassinámos as vossas comunidades. Basta, perdoem-nos. E, se não nos perdoarem, também não nos importa, o projecto tem de ser concluído”?

E agora sabemos que os que pediriam perdão pela central termoeléctrica são os mesmos do comboio mal chamado “Maya”, os mesmos do “corredor transístmico”, os mesmos das barragens, minas a céu aberto e centrais eléctricas, os mesmos que fecham fronteiras para impedir a migração provocada pelas guerras que eles próprios alimentam, os mesmos que perseguem o Mapuche, os mesmos que massacram o Curdo, os mesmos que destroem a Palestina, os mesmos que atiram em afro-americanos, os mesmos que exploram (directa ou indirectamente) trabalhadores em qualquer canto do planeta, os mesmos que cultivam e glorificam a violência de género, os mesmos que prostituem crianças, os mesmos que te espiam para saber do que gostas e te venderem isso – e se não gostas de nada, fazem-te gostar -, os mesmos que destroem a natureza. Os mesmos que querem fazer-te acreditar, a ti, aos demais, a nós, que a responsabilidade por este crime mundial e em marcha é responsabilidade de nações, de crenças religiosas, de resistência ao progresso, de conservadores, de línguas, de histórias, de jeitos. Que tudo se sintetiza num indivíduo… ou indivídua (não esquecer a paridade de género).

Se fosse possível ir a todos esses cantos deste planeta moribundo, o que farias? Bem, não sabemos. Mas todas, todos, todoas nós, zapatistas, iríamos para aprender. Claro, também para dançar, mas uma coisa não exclui a outra, acho eu. Se houvesse essa oportunidade, estaríamos dispost@s a arriscar tudo, tudo. Não apenas a nossa vida individual, também a nossa vida colectiva. E, se essa possibilidade não existisse, lutaríamos por criá-la. Por construí-la, como se de um navio se tratasse. Sim, eu sei, é uma loucura. Algo impensável. Quem pensaria que o destino daqueles que resistem à central termoeléctrica num pequeníssimo canto do México poderia interessar à Palestina, ao mapuche, ao basco, ao migrante, ao afro-americano, à jovem ambientalista sueca, à guerrilheira curda, à mulher que luta noutra parte do planeta, ao Japão, à China, às Coreias, à Oceânia, à África mãe?

Não deveríamos, em vez disso, ir, por exemplo, a Chablekal, no Yucatán, às instalações da Equipo Indignación, e exigir-lhes: “Ei! vocês são de pele branca e crentes, peçam perdão!”? Tenho quase a certeza de que responderiam: “Não há problema, mas esperem pela vossa vez, porque agora estamos ocupad@s a acompanhar aqueles que resistem ao Comboio Maya, aqueles que sofrem pilhagens, perseguição, prisão, morte.” E acrescentariam:

“Além disso, temos de lidar com a acusação que o supremo nos faz de sermos financiadas pelos Illuminatti como parte de uma conspiração interplanetária para deter o 4T.” Do que, sim, tenho a certeza é que usariam o verbo “acompanhar”, e não os “dirigir”, comandar”, “liderar”.

Ou devíamos antes invadir as Europas ao grito de “rendam-se, caras-pálidas!” e destruir o Pártenon, o Louvre e o Prado e, em vez de esculturas e pinturas, encher tudo com bordados zapatistas, especialmente com máscaras zapatistas – que, por sinal, são eficazes e bonitinhas –; e, em vez de massas, mariscos e paelhas, impor o consumo de elotes, cacaté e erva moura; em vez de refrigerantes, vinhos e cervejas, pozol obrigatório; e, para quem sair à rua sem passa-montanhas, multa ou prisão (sim, opcional, porque também não é preciso exagerar); e exclamar: “Vá lá, esses roqueiros, marimba obrigatória! E a partir de agora, cumbias puras, nada de reggaeton (tentador, não?)! Vá, tu, Panchito Varona e Sabina, os demais para os coros, comece-se com “Cartas Marcadas”, e em loop, mesmo que já sejam dez, onze, doze, uma, duas ou três horas da madrugada… e já, porque amanhã temos de madrugar! Ouves outro tu, ex-rei pés-em-polvorosa, deixa em paz esses elefantes e põe-te a cozinhar! Sopa de abóbora para toda a corte!” (eu sei, a minha crueldade é requintada)?

Agora diz-me: achas que o pesadelo dos que estão acima é que os obriguem a pedir perdão? Não será que o que lhes povoa os sonhos de coisas horríveis é que desapareçam, que não importem, que não sejam levados em consideração, que não sejam nada, que o seu mundo se desmorone sem sequer fazer barulho, sem ninguém que se lembre deles, que lhes erga estátuas, museus, cânticos, feriados? Não será que os aterroriza a possível realidade?

 


Ilustraçōes de Ana Farias


Artigo publicado no JornalMapa, edição #31, Julho|Setembro 2021.


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Jornal Mapa

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