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Lendo: «Devemos avançar com a organização de circuitos económicos solidários» – Entrevista com Euclides Mance (parcial)

«Devemos avançar com a organização de circuitos económicos solidários» – Entrevista com Euclides Mance (parcial)

«Devemos avançar com a organização de circuitos económicos solidários» – Entrevista com Euclides Mance (parcial)


«Explorar as fendas do capitalismo» através da criação de «circuitos económicos solidários» que interfiram nos fluxos económicos, políticos e culturais dominantes, promovendo assim «a libertação das forças de produção, intercâmbio e crédito», rumo ao bem-viver das pessoas e das comunidades. É esta a proposta de um dos principais teóricos da Economia Solidária e da Economia da Libertação na América Latina, Euclides André Mance, co-fundador do Instituto de Filosofia da Libertação e da rede Solidarius, e autor de obras como Constelação Solidarius (2008), onde analisa o sistema capitalista e as suas falhas, e propõe caminhos para superá-lo.

Em entrevista nas vésperas do arranque do Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras (cuja primeira parte teve lugar de 25 de Junho a 1 de Julho online, e continuará em Outubro em Barcelona), o filósofo brasileiro fala sobre auto-gestão das comunidades a partir dos territórios locais e apela à formação de redes e circuitos de cooperação a diferentes escalas, de forma a «expandir e consolidar a libertação das comunidades humanas, organizando novas formas sociais e de convivência dos seres humanos entre si e com os ecossistemas».

Partindo de um diagnóstico sobre as principais carências do capitalismo, Euclides Mance disseca as várias fendas sistémicas, que vão desde o plano do crédito que leva ao endividamento e concentração do capital, às trocas e desigualdades sócio-económicas, à produção e distribuição de valores, passando também pelas falhas da «democracia», com a «subordinação do Estado aos interesses do capital internacional, resultando na negação de direitos sociais, políticos e económicos das populações».

Para Mance, a crise da COVID-19 tem vindo a aprofundar estas fendas, com o agravamento do endividamento das pessoas, empresas e países, a exclusão de trabalhadores e trabalhadoras, a oscilação da moeda e outros signos de valor, o aumento da concentração de riqueza, o crescimento do «capitalismo de plataforma», e as próprias medidas adoptadas pelos governos para enfrentar a crise, que só vêm reforçar os «fluxos materiais e de valores» das cadeias capitalistas de produção, circulação e consumo, bem longe de uma perspectiva de superação sistémica. Perante este cenário, quais as alternativas possíveis?

Como vê as propostas da economia solidária e de outras redes colaborativas de apoio mútuo e solidariedade que também tem estudado ao longo dos anos?

A principal questão é como é que estas iniciativas e redes irão avançar na organização de circuitos económicos solidários para construir alternativas ecológicas e solidárias face aos circuitos económicos do capital. Actualmente, grande parte do valor económico produzido nas economias solidárias e alternativas, em todo o mundo, acaba por fluir para os circuitos económicos do capital, desaguando na acumulação capitalista de valores. Por exemplo, quando produtos gerados nos circuitos solidários são comercializados nos circuitos do capital com a obtenção de lucros pelo capital mercantil (comercial e financeiro); em operações de financiamento de produção e comercialização solidários, com o pagamento de juros aos bancos privados que fornecem crédito; com a aquisição de produtos finais ou de meios produtivos por actores da economia solidária a fornecedores capitalistas (…); quando empresas solidárias são subcontratadas por empresas capitalistas, entre outras formas.
Deste modo, estes actores solidários e alternativos cumprem um papel importante na reprodução do capitalismo, completando os valores necessários para assegurar a engrenagem capitalista da produção e circulação com valores que não foram distribuídos pelo capital, mas sim por estas economias sociais e solidárias.

Por outro lado, quando estas iniciativas se integram em circuitos económicos solidários, a situação pode ser muito diversa. Pois, neste caso, utilizando ou não plataformas virtuais, o consumo final das pessoas e dos agregados, as suas aquisições de bens e serviços, bem como o consumo produtivo das próprias iniciativas, é agrupado e atendido nestes circuitos, fortalecendo as cadeias de produção, circulação e consumo solidárias.

Ao conectar estes fluxos económicos, constroem-se estratégias que permitem criar fundos para a libertação das forças de produção, circulação e crédito, com valores que anteriormente eram obtidos como lucros por actores capitalistas nos circuitos económicos do capital, mas que agora são realizados como excedentes de valor nas iniciativas, físicas ou virtuais, dos circuitos económicos solidários, uma vez que através deles se pode adquirir aquilo que se necessita. Estes circuitos podem ser formalmente registados como cooperativas para a autogestão comunitária ou formalizados de outras formas. O fundamental é que estejam integrados em redes colaborativas e solidárias, para que possam retroalimentar-se nos seus fluxos de libertação económica.

O conceito das «economias transformadoras» tem vindo a ganhar importância nos últimos anos. Qual é o potencial deste conceito e como podem as diferentes economias alternativas retroalimentar-se a partir desta ideia comum?

A transformação de algo significa a passagem (trans-) de uma forma a outra forma. O valor económico, por exemplo, sofre muitas transformações na sua metamorfose ao longo dos processos de produção e circulação. No sistema capitalista, o valor-capital, sob a forma de dinheiro, é investido em meios produtivos e trabalho. Estes são transformados em produtos. Estes passam por outra metamorfose ao converter-se em mercadorias quando são levados ao mercado. E depois são trocados por dinheiro, de tal modo que se recupera o valor investido e se realiza como lucro o valor novo que foi criado pelo trabalho que produziu as mercadorias. Assim, a transformação do valor no processo de produção, circulação e crédito é condição necessária para a reprodução ampliada do capital. Nas acções desta metamorfose ou transformação do valor, ocorrem processos de exploração no trabalho, expropriação no intercâmbio e espoliação no crédito que fazem do capitalismo um sistema intrinsecamente injusto.

Se por economia transformadora se entende uma economia que nega a forma capitalista de produção, circulação e crédito para criar outros modos de produção e outros sistemas de intercâmbio e crédito que sejam ecológicos, solidários e autogestionados pelos trabalhadores e suas comunidades, então, de facto, pode tratar-se de uma transformação libertadora. Mas se somente se introduz novas formas de organizar a economia sem suprimir estas estruturas de exploração, expropriação e espoliação, então ela contribui para aperfeiçoar o capitalismo ou para criar algum outro sistema económico que não supre os mecanismos estruturais de dominação económica.

«o objectivo é avançar na construção de um sistema económico pós-capitalista, multiplicando e integrando circuitos económicos solidários em redes colaborativas, com o sentido histórico de realizar o bem-viver das pessoas e comunidades, conectando as capacidades e necessidades humanas para expandir as liberdades de todos e não o enriquecimento de alguns»

Não basta somente libertar o valor e o trabalho de um sistema económico, se estes elementos são postos em contradição entre si no novo sistema que se organiza com a superação do anterior. O valor económico e o trabalho, ambos libertos do sistema feudal, foram condição necessária ao surgimento do sistema capitalista. Vemos hoje que o desenvolvimento das forças produtivas está a impactar fortemente as relações sociais de produção, circulação e crédito. (…) Com tais valores e trabalho assim libertados, o objectivo é avançar na construção de um sistema económico pós-capitalista, multiplicando e integrando circuitos económicos solidários em redes colaborativas, com o sentido histórico de realizar o bem-viver das pessoas e comunidades, conectando as capacidades e necessidades humanas para expandir as liberdades de todos e não o enriquecimento de alguns.
Portanto, a questão é onde se quer chegar com a transformação que se procura fazer e como se fará tal transformação. É aí que se decide, na minha opinião, o potencial deste conceito.

Que papel joga neste cenário a realização de um Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras como o que tem lugar agora?

O Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras tem um papel muito importante. Há muitas e diversas práticas de economias sociais, solidárias e alternativas. E o conceito de economia transformadora tenta abrigar, na minha visão, a diversidade de possibilidades de realização económica de carácter libertador. O fórum é um espaço muito importante de fluxos de informação, comunicação e educação em processos dialógicos partilhados que brindam todos/as com uma compreensão mais ampla da mesma realidade dos actores e suas propostas para a transformação da economia e pode, também, ser um espaço muito importante de fluxos de poder, com o estabelecimento de acordos entre actores para acções conjuntas. Mas se o fórum não avança decididamente para promover a integração local e global dos fluxos económicos próprios das economias transformadoras, não haverá transformação económica alguma que seja geradora de outros modos de produção e apropriação, outros sistemas de troca e crédito e outras formações sociais efectivamente libertadoras. Não basta dialogar sobre o mundo ou partilhar visões sobre ele, há que transformá-lo.

Que linhas estratégicas crê que deveriam ser incorporadas na agenda deste movimento nos próximos meses?

Uma estratégia integra diferentes acções entre si para o alcance de objectivos colectivamente definidos. Se o objectivo é realmente a transformação da economia mundial com bases ecológicas e solidárias, a estratégia deve ser desenhada para o longo prazo, para que se defina com razão as acções mais imediatas, para que elas contribuam para a consecução de tais objectivos. Com esta perspectiva, o mais necessário, na minha opinião, é a organização de circuitos económicos solidários, através da criação e desenvolvimento de plataformas virtuais que facilitem a organização de comunidades económicas e a integração local e global dos fluxos económicos dos territórios, organização de emporios físicos ou virtuais para mediar as aquisições dos consumidores solidários com margens de excedentes destinados a fundos de libertação económica para investimentos colectivos que possam dar origem a iniciativas económicas autogestionadas nos territórios.

O processo de mapeamento de necessidades e ofertas, organização de catálogos de compras, trocas e doações, activação de contas electrónicas para transações nestes catálogos (com moedas, pontos e agradecimentos registados em blockchains) e deliberações democráticas sobre o circuito, possibilitam consolidar as comunidades económicas, que podem integrar-se em rede com outros circuitos, através da mesma plataforma, em fluxos económicos regionais, nacionais e internacionais.

Outro ponto é que muitas pequenas empresas capitalistas estão a fechar actividade neste momento de crise. Face a isto, se as plataformas de economia solidária fossem capazes de agrupar volumes de consumo significativo, seria possível usar os recursos dos fundos de libertação económica para que os/as trabalhadores/as de algumas destas empresas pudessem comprá-las e pô-las de novo em funcionamento, mas agora em autogestão, oferecer os seus produtos através de plataformas para a rede de circuitos e restituir progressivamente os valores disponibilizados pelo fundo. (…)

Andy Lamb

Importantes sectores da população e dos movimentos sociais e correntes alternativas estão a fazer uma leitura do momento de crise actual como uma oportunidade de mudança para uma transição eco-social. Vê isto como possível? Como seria um mundo guiado pelas lógicas e valores da economia social e solidária?

Sem uma vacina ou medicamento eficaz nos próximos meses para enfrentar o novo coronavírus ou a COVID-19, esta pandemia poderá levar à morte milhões de pessoas em todo o mundo, que na sua maioria não têm condições materiais para proteger-se a si mesmas e às suas famílias do contágio do vírus.

Neste momento, em muitos lugares, empresas capitalistas avançam na conversão de processos laborais que lhes permitem operar de outros modos, reduzindo custos. E também, para consolidar as suas marcas, fazem doações para fins sociais de valores que antes estavam destinados à publicidade nos seus orçamentos. Com a quebra de empresas mais pequenas ou mais débeis, as maiores ou mais fortes açambarcarão mercados e concentração do capital prosseguirá. E todos os ajustes que se façam, agora, de forma provisória, poderão ou não ficar como definitivos mais tarde. Mas, como a classe trabalhadora está muito debilitada, o cenário pode ser de muitas perdas para os mais pobres e para as classes médias.

No que diz respeito aos governos, em linhas gerais, vê-se que as políticas neoliberais estão a dar espaço a acções de intervenção económica que, contudo, não procuram mudar as bases da exploração do trabalho, expropriação na troca, e espoliação no crédito, fundamentais no capitalismo. Os governos necessitam de reactivar a economia para captar impostos para manter os próprios serviços públicos. Até onde estarão dispostos a ampliar as dívidas públicas para não cortar políticas públicas não se sabe. Mas para os mais pobres o cenário também é muito desfavorável.

E, por outro lado, como não há uma solução capitalista para integrar os excluídos nos processos de produção e consumo sem endividá-los, e também não haverá solução para os Estados manterem economicamente milhões de excluídos e pessoas com sequelas da COVID-19 sem colectar impostos sobre a actividade económica, grande parte da sociedade que ficará desempregada e, sem cobertura de políticas públicas, procurará soluções para a sua sobrevivência, podendo encontrar resposta tanto nas economias solidárias como na criminalidade.

Se na pandemia muitos estão a redescobrir a importância da solidariedade, o futuro pós-pandemia seguirá pleno de contradições. O capitalismo não se dissolverá por si mesmo. Se as suas fendas sistémicas estão cada vez mais alargadas, por outro lado, as forças do capital estão cada vez mais fortes. E isso exigirá das forças económicas solidárias muita capacidade de mobilização, organização e educação para construir as bases dos novos modos de produção e apropriação, dos novos sistemas de intercâmbio e crédito e das novas formações sociais, todos eles ecológicos e solidários, que há que construir.

 


Texto de Blanca Crespo
Artigo publicado originalmente em castelhano na revista mensal La Marea em Junho de 2020 e disponível em lamarea.com
Tradução, enquadramento e resumo de Sara Moreira
Ilustraçōes de Andy Lamb [CC BY]


Artigo publicado no JornalMapa, edição #28, Agosto|Outubro 2020.

 


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Sara Moreira

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