Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Pandemia Solidária: Surto de apoio mútuo espalha-se pelo país
De norte a sul do país, têm-se multiplicado iniciativas locais de solidariedade e apoio mútuo que visam fazer face às consequências sociais e económicas trazidas pela pandemia de covid-19.
A disseminação do novo coronavírus, e a imposição do estado de emergência que obrigou ao confinamento social e a um hiato sem precedentes da economia e da vida em sociedade, levantou uma onda de acções colectivas e solidárias em Portugal. De norte a sul do país, foram-se confirmando casos que revelam a diversidade desta «pandemia solidária»: cantinas autogeridas, redes de distribuição de alimentos, apoio doméstico a pessoas e animais necessitados, campanhas de angariação de bens e de fundos, fabrico caseiro de materiais de protecção, e também protestos à janela e velhas lutas renovadas em defesa do Sistema Nacional de Saúde, do pequeno comércio, da habitação, dos direitos dos trabalhadores, migrantes e estudantes.
Paralelamente aos mapas lançados diariamente pela Direcção-Geral da Saúde, desde o dia 3 de Março de 2020, com o relatório da situação epidemiológica em Portugal, outros mapas surgiram para cartografar as acções solidárias que se têm espalhado pelo território. Um desses mapas é o Achata a Curva (achataacurva.com), no qual se podem encontrar dezenas de «iniciativas cívicas de combate à covid-19», que vão desde a oferta de alojamento solidário à procura de alimentos para distribuição gratuita. Este mapa expande para o território português a plataforma Frena La Curva, lançada no estado espanhol em Março, disponibilizando uma ferramenta colaborativa para a partilha de necessidades, ofertas, apoios e serviços, bem como ligações para grupos de apoio em várias zonas do país, que se organizam principalmente pelo Facebook.
Também a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), entidade que agrega o sector cooperativo em Portugal, lançou um directório online de iniciativas de voluntariado a nível local e nacional «para apoiar quem mais precisa». De carácter mais institucional, a plataforma agrega acções promovidas pelas juntas de freguesias, municípios, paróquias, fundações, IPSS e associações, bem como iniciativas espontâneas – «cidadãs» – que pretendem colmatar as necessidades e aliviar os impactos da pandemia. Muitas destas respostas são as únicas ao alcance de uma parte da população que só assim vê aliviados os impactos de uma crise que não é só sanitária mas também económica, social e de cuidados, e que se acredita estar apenas a começar. Neste contexto emergiu o papel preponderante e de proximidade da freguesia, assim como as dificuldades que resultaram da redução de cerca de 1 milhar de juntas em 2012, por imposição da troika.
Em Abril de 2020, o Jornal MAPA inaugurou uma rubrica no seu site intitulada Pandemia Solidária. Até ao fecho desta edição impressa (Jornal Mapa nº 27, Maio-Julho 2020), sete entrevistas foram publicadas no site, dando conta de diversas iniciativas solidárias que surgiram em resposta à crise económica e social que se veio a confirmar e a enfatizar no contexto da pandemia de covid-19. Neste artigo focamos em particular quatro dessas iniciativas, que têm em comum – entre outras características – o facto de distribuírem refeições gratuitamente.
A alimentação, nas suas várias dimensões – desde o acesso e distribuição, até à produção e consumo –, tem sido uma das necessidades tornadas mais prementes com a pandemia (como demonstra o artigo que se segue nesta edição do Jornal MAPA). Foi para dar resposta a essa necessidade que surgiram muitas das iniciativas abordadas nas entrevistas para a série Pandemia Solidária, dedicadas à confecção e distribuição de bens, sobretudo alimentares.
Do norte, chegaram-nos novidades da Rede Popular de Apoio Mútuo do Porto, uma plataforma que, até à data, reúne quatro espaços e/ou colectivos: o centro social autogerido A Gralha, a Rosa Imunda, o Núcleo Anti-Racista do Porto e o Grupo de Apoio à Habitação. Esta rede conta com três pontos activos de recolha e distribuição de bens essenciais, entrega mais de cem cabazes por semana e disponibiliza – também semanalmente – take-away livre (de sopa e fruta), bem como apoio logístico e esclarecimento de dúvidas relacionadas com a covid-19.
Mais ao sul, em Lisboa, parece existir uma mão-cheia de cantinas solidárias que funcionam de forma gratuita ou por donativo. Entre elas, a Cozinha Solidária Autogerida da Penha de França, dinamizada pelas pessoas que integram o centro social Disgraça. Esta cozinha tem preparado mais de 75 refeições gratuitas para take-away, três dias por semana, «a todas as pessoas que queiram ter acesso a uma refeição nutritiva e saborosa». Algumas das refeições são distribuídas na entrada do centro social e outras são distribuídas por diferentes zonas da cidade.
Numa freguesia vizinha, em Arroios, a associação Recreativa dos Anjos (RDA) inaugurou também uma cantina solidária, que tem distribuído diariamente mais de 150 refeições em regime de take-away. «É para toda a gente e assumimos que não nos cabe a nós definir uma hierarquia baseada nas necessidades de cada um», dizia a RDA em entrevista ao Jornal Mapa em meados de Abril, apontando que a crise estava a afectar «com maior evidência as pessoas cujas vidas precárias estão a ser prorrogadas e acentuadas por estes tempos de indefinição e de quarentena». Foi a «suspensão ou encerramento temporário de grupos e serviços que tradicionalmente providenciavam comida gratuitamente», bem como o défice de apoios estatais, que conduziram o colectivo a reformular a sua actividade, criando a Cantina Solidária. Um mês e pouco depois de começar a descascar quantidades enormes de vegetais diariamente, a associação reconhece uma «cara diferente» da zona de Almirante Reis, onde sempre esteve, mas agora «sem turistas, estudantes, trabalhadores, erasmus e hipsters». Num balanço publicado no Facebook em Maio notam que «as diversas camadas de pobreza normalmente escondidas por entre o corrupio do “bairro mais cool do mundo” tornam-se evidentes».
Também na margem sul do Tejo, no Barreiro, a Cooperativa Mula lançou uma cantina solidária que fornece refeições e pequenos-almoços diários, em regime de take-away e faz entregas ao domicílio. O que começou como uma necessidade a partir de dentro, pela condição precária partilhada por muitas das pessoas que gerem o espaço cultural no Barreiro e que cedo começaram a perder rendimentos, em pouco tempo passou a servir 165 pessoas nos concelhos do Barreiro e da Moita. «Rapidamente compreendemos que se aproximava um período de enormes dificuldades a nível económico para um número muito alargado de pessoas, e que o foco das preocupações da maioria estava praticamente todo no problema sanitário e muito pouco na crise social.» A Cantina Solidária da Mula contrapôs ainda as «lamentáveis atitudes de várias superfícies comerciais que contactámos, aquelas que mais lucram com esta crise, que inflacionam como todos vêem os preços e que insistem em deitar para o lixo quantidades exorbitantes de comida em bom estado. Mas que não dão qualquer tipo de resposta aos que trabalham para tentar mitigar a crise social». Quem recorre à cantina da Mula são as «pessoas que não conseguem obter apoio por via das respostas estatais ou municipais, por não caberem nos critérios demasiado apertados que a Segurança Social exige, ou pela incapacidade de esses meios darem resposta face à dimensão dos pedidos de ajuda».
A Rede de Apoio Mútuo do Porto acompanha esta reflexão e lembra que, muitas vezes, «a informalidade, a independência e a não burocratização destes pontos [de distribuição de bens] tornam a sua acção muito ampla, porque pessoas que normalmente não cumprem os requisitos necessários aos apoios institucionais têm aqui um lugar aberto». Um dos colectivos que integra esta rede, o Núcleo Anti-Racista do Porto, diz que tem sido contactado por «pessoas diversas, com diferentes e complexas realidades, mas que dialogam com a questão da vulnerabilidade social causada pela crise da covid-19».
«Muitas das pessoas que têm procurado a REDE desde a sua criação são pessoas racializadas e/ou (i)migrantes com vínculos laborais precários ou inexistentes, as primeiras a serem “descartadas” por parte de empregadores e que neste momento se encontram numa situação bastante vulnerável».
Já a Rosa Imunda, que faz a recolha e distribuição de alimentos da Rede Popular no centro histórico do Porto, conta que têm aparecido sobretudo muitos vizinhos do bairro, pessoas (i)migrantes e outras que vivem na rua. «No bairro onde estamos, as vidas para além do turismo são precárias e fazem-se num desenrasque diário, informalmente e muito baseadas no apoio entre vizinhxs.»
Para além disso, como afirma a Cozinha Solidária Autogerida da Penha de França, estas iniciativas constituem uma forma de experimentar «modos de resistências e relações comunitárias através do apoio mútuo» (ver caixa).
A afinidade com o conceito de apoio mútuo é transversal a várias destas iniciativas que estão a ensaiar na prática uma forma de organização não hierárquica e horizontal, como esclarece a Rede Popular de Apoio Mútuo do Porto: «O apoio mútuo baseia-se na organização de base, procura a horizontalidade e funciona na interajuda (sic), desenhando estratégias para a activação de comunidades mais ou menos temporárias que repensem e ponham em causa a estrutura social e económica vigente.» A ideia é reforçada por outros colectivos, como a Disgraça, para quem a «organização de actos solidários que reforçam a capacidade de coesão e de autonomia colectiva, permite ampliar formas efectivas de resistência».
De acordo com os grupos que entrevistámos, poderá ser através deste trilho – o que busca a autonomia – que se distinguem os caminhos da solidariedade, tantas vezes confundida com «caridade» e assistencialismo. Esta distinção poderá parecer difícil de traçar num momento como este, em que as iniciativas solidárias desempenham papéis sociais que se assumiria, à partida, caberem ao Estado.
«É certo que há muita confusão entre estes conceitos», afirma a Disgraça, reconhecendo como «em certas situações práticas é até desafiante perceber onde se encontra a linha que os separa».
«Criamos uma cozinha neste formato como resposta a uma situação de crise, que promete prolongar-se e complicar-se, mas com a convicção de que as demonstrações solidárias devem assentar numa matriz não hierárquica, que deve ter em conta a importância de construir condições favoráveis e destruir as que atrapalham, para que todas possamos ter as mesmas oportunidades para prosperar, participar e existir.»
A RDA confirma esta ideia ao reflectir sobre a gratuidade de refeições na sua cantina: «Aquilo que normalmente poderia ser visto como um gesto de caridade passa a ser um gesto de amizade.» Para o colectivo, a solidariedade assenta «no entendimento de que a condição de desigualdade e injustiça é criada a partir de uma estrutura viciosa que define e pratica posições e relações de poder». Reconhecer estes desequilíbrios fez com que as iniciativas se munissem de liberdade para lhes fazer frente com as próprias mãos e em colectivo.
O contraponto ao assistencialismo, e simultaneamente a capacidade de ultrapassar as meras respostas temporárias de apoio mútuo, surge no entrecruzar da análise crítica e da noção de apoio mútuo com o de comunidade. Seja no simples reforço das relações de vizinhança, que todas as iniciativas e espaços aqui entrevistados pelo Jornal MAPA apontaram, seja no trabalho das comunidades socialmente invisíveis dos bairros periféricos das cidades onde, muito antes de qualquer pandemia, já existiam redes de apoio que interrogavam e procuravam quebrar as questões de classe, raciais ou de género que perpetuam esse assistencialismo.
Todos estes grupos têm-se organizado de forma horizontal e autónoma, apelando aos donativos e mantendo algumas parcerias informais que atenuam os gastos diários com a aquisição de alimentos. Alguns grupos beneficiam de ofertas de mercearias, restaurantes ou padarias locais, que têm oferecido os seus excedentes. Outros grupos vão respigar a mercados, ou produzem alguns ingredientes, como é o caso da Cooperativa Mula, que conta com uma horta de cerca de 1400 metros quadrados. De acordo com a Cooperativa: «Alguns membros têm-se dedicado a ela com enorme afinco desde que a crise começou, para que diminuamos a dependência alimentar do exterior ao máximo.»
Todas estas iniciativas exigem uma grande capacidade organizativa e muita dedicação. Os grupos têm-se organizado em pequenas equipas, em turnos rotativos, para assegurar todas as funções inerentes a estas iniciativas: obter a comida, recolher e organizar donativos, cozinhar, distribuir os bens ou servir as refeições, limpar os espaços, e também fazer algum back office, como responder a mensagens nas redes sociais e e-mails ou responder a entrevistas, como as que o MAPA organizou para a sua série #pandemiasolidária.
No entanto, tal como contam as pessoas da RDA, as formas de organização pré-covid-19 tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: «Tem sido complicado gerir um projecto tão transmutável, também pelos obstáculos que a distância social nos impõe. As formas que tínhamos para reunir, discutir e tomar decisões mudaram e ainda nos estamos a adaptar a elas.»
Por isso, todos estes projectos têm a preocupação de seguir normas de higiene que permitem proteger tanto as pessoas que estão a participar em turnos, como as que vêm procurar apoio. Cada grupo segue, pois, um protocolo «para salvaguardar o cuidado e o bem-estar de todxs», como refere o centro social A Gralha, da Rede Popular de Apoio Mútuo do Porto. Na Cozinha da Penha de França, por exemplo, as várias equipas estão organizadas em pequenos grupos de afinidade, de forma modular e independente, para assim «reduzir ao máximo a possibilidade de contágio.» Esta cozinha acrescenta ainda: «Desta maneira tentamos garantir a segurança das pessoas que vêm à entrada do espaço, das que contactamos na rua e de todas as que habitam o projeto, permitindo a continuidade deste enquanto for necessário.»
Texto: Sara Moreira e Catarina Leal
Este artigo faz parte da série #PandemiaSolidária e foi publicado na edição nº 27 do Jornal Mapa (Maio-Julho 2020).
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