Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Entre o Sustento e a Sustentabilidade
Jornal MAPA: Perante um desencontro que existe entre ambientalistas e pescadores, que entendimento de ambiente tem hoje o pescador?
Vanessa Amorim: A questão deles é antes de mais muito prática: primeiro está o seu sustento e o seu modo de vida. É o normal. Uma coisa que vários pescadores me apontaram é que nos discursos de vários ambientalistas em Setúbal, quando se fala dos impactes das dragagens do Sado, colocam os golfinhos e os pescadores lado a lado… Compreendo porque é que as pessoas o dizem, mas isso para os pescadores é uma ofensa também. Nas associações disseram-me o mesmo: «toda a gente se preocupa com o golfinho, mas não se preocupam com a espécie rara que é o pescador, só quando de repente é preciso ajuda para alguma reivindicação». E isso gerou crispação, [que existe] antes até destas dragagens, como tenho vindo a observar numa discussão que mantenho com vários pescadores sobre a forma como vêem o estuário e o rio ao longo dos anos. Claramente sentem que foram, e estão a ser, alvo de uma perseguição relativamente às suas acções sobre o ambiente. Como se os pescadores, em geral, fossem os culpados últimos pelo estado do mar. Sentem que isso é profundamente injusto, sobretudo se tivermos em conta que em Portugal a pesca que se pratica, mesmo a pesca de cerco, é de pequena escala quando comparada com a do resto da União Europeia. Uma pesca que, embora tenha o seu impacte ambiental, não tem o impacte ambiental dos navios fábrica.
Em Portugal temos uma estratégia política para a pesca que não é enquanto atividade económica. Uma reprodução da política comum da pesca, que é gerir recursos e minimizar o impacte da pesca no ambiente. E por isso existem tantas entidades em Portugal que podem fiscalizar e multar a atividade. O que os pescadores costumam argumentar é que «nós, que de facto lançamos um maço de tabaco para o mar, ou às vezes vamos pescar no parque marinho Luís Saldanha, nós é que temos muito impacto, mas depois, a cada quinze dias ou todos os meses, temos a muralha da frente ribeirinha verde das algas, de repente castanha, de um dia para o outro. Porque há uma descarga. A nós multam-nos logo, mas continua a haver descargas. Dizem que as indústrias até estão a fazer um esforço, mas que multas é que elas levam?» Ou seja, eles estão sempre a colocar em perspectiva, têm consciência do seu impacto e por isso dizem que «se tiver de pescar com uma arte proibida, ou num sítio proibido, porque preciso de comer, vou fazê-lo». Eles têm uma noção de ambiente e de preservação diferente e que pode não ser tão estrita, mas preocupam-se.
Mas perdura um sentimento de perseguição…
Aqui a questão tem muito a ver com a forma como a pesca foi sendo tratada pelo Estado ao longo do tempo… Desde o Marquês de Pombal, que mandava incendiar aldeias de pescadores porque eram sempre vistas como focos de potencial rebelião e porque as comunidades piscatórias desde sempre acolhiam pessoas que eram também consideradas marginais da sociedade, etc. Isso não é por acaso, tem a ver com uma certa resistência que sempre tiveram face à regulação e ao Estado. A meu ver, essa forma de resistir resulta dessa mão muito reguladora do Estado na pesca. Numa saída de mar podes ter logo três ou quatro fiscalizações, que é uma coisa muito absurda. Mas depois existem este tipo de impactes, que qualquer setubalense vê, e sentem que existem dois pesos e duas medidas. «Nós é que somos os feios, porcos e maus».
E há depois a relação com os grupos ambientalistas.
É a forma da abordagem. Eu já observei, em diversas situações, que a abordagem é de facto de fiscalizadores, higienistas quase. Ilustrativo foi o que se passou nas acções de sensibilização e limpeza durante a festa da Nossa Senhora do Rosário em Troia. Há quatro anos, estou na Caldeira de Tróia, eu e todas as outras famílias, e começo a ver uma nuvem branca de pessoas. Naquele ano não eram só as t-shirts (e por isso é que deu barraca e nos anos seguintes não o fizeram), estavam com luvas, com máscaras e alguns com batas… Parecia assim uma coisa de estarmos contaminados: a acampar e a beber na praia, a cagar e a mijar, que na realidade é o que fazemos, somos os feios, porcos e maus, e eles, coitadinhos, têm de ir todos protegidos. As pessoas estavam a acampar num momento de convívio, muito importante e quase sempre as únicas férias que têm no ano, um momento de estreitar laços comunitários num espaço que tem sido também algo desapropriado. Com a presença no terreno sempre de polícia, com a ideia de que é a festa dos bêbados. Enfim, existe um conjunto de estereótipos em relação àquela festa, mas para as pessoas é um momento importante no ano, não só por uma questão de devoção, porque há muita gente que não tem necessariamente uma devoção, mas uma questão mesmo muito comunitária.
Para desejar-se um melhor ano em termos de pescarias e de esperança que as coisas podem melhorar. De repente aparecem umas pessoas que vêm não se sabe de onde e começam a entrar directamente nos acampamentos. Os acampamentos não são como um festival de verão ou um parque de campismo, é campismo selvagem em que as pessoas reproduzem na festa o espaço do lar. E tu não entras num acampamento de alguém sem conheceres. E começam a observar o que as pessoas têm no seu acampamento…. com um ar e um tom de moralismo que é terrível e que as pessoas não gostam… sentem-se policiadas. Nós queremos preservar o ambiente, existe um problema ambiental grave, mas não podes julgar as práticas das pessoas desta forma.
Não se pode exigir uma forma de cobrança, que de repente estejam na frente de qualquer luta ambiental, quando existem outros problemas estruturais da pesca
E como aliam os pescadores o discurso do fim da sua actividade com o fim dos recursos?
Quando perguntas aos pescadores se existe mais ou menos peixe, eles dizem-te que existe menos. Têm essa noção sobretudo por aquilo que observam no estado do tempo e do mar. Não digo que é consensual, mas a grande maioria está de acordo que, de facto, o tempo, o clima mudou. As estações já não estão marcadas como estavam quando eles começaram a aprender a andar à pesca e ao mar. Eles sabem que isso influencia directamente a abundância do peixe. Se calhar não estão na perspectiva de urgência climática, mas estão preocupados. Sobretudo quando agora tens invernos muito frios, relativamente frios para Portugal, mas com pouca chuva e sem haver tempestades… Se recuares há 40 anos atrás, eles dizem-te que passavam fome no inverno, porque havia a cada quinze dias uma tempestade brutal, mas a tempestade é super necessária para qualquer pescador, porque remexe o fundo. Fazer essas ligações é também uma preocupação com o ambiente, não é uma simples posição extractivista que os pescadores têm, de «vou lá tirar tudo o que há». Agora também temos que ter em conta que a grande maioria não tem assim tanta escolaridade e acesso à informação como outras pessoas têm. Apesar disso, o contacto diário com o rio, o mar, os ventos, os peixes, fê-los desenvolver um conhecimento sobre o meio que não deve ser descartado. Não se pode exigir uma forma de cobrança, que de repente estejam na frente de qualquer luta ambiental, quando existem outros problemas estruturais da pesca que os faz andar muito dispersos.
OS PESCADORES E A CIDADE
A história da pesca em Setúbal foi sendo condicionada em detrimento das indústrias. O peso da cidade industrial da qual os pescadores – já sem o poder da sardinha – saíram órfãos. Como se situam os pescadores nesse mundo industrial?
Há aqui várias questões. Há toda a questão da pesca em Portugal, que sofreu um declínio. Entras na União Europeia e acentua-se drasticamente o declínio da pesca, no número de embarcações, de pescadores, mas também de volume de pescado. Portugal está em deficiência de consumo de peixe, produz apenas cerca de 20% daquilo que consome, sendo que quando entrámos para a União Europeia produzíamos quase 80%. Há uma questão mais de conjuntura, não é só ter havido aqui indústrias que tiraram lugar à pesca, mas também o contexto nacional e europeu, e da entrada para mercados comuns, que também afetou a pesca.
Neste caso, a pequena pesca de gestão familiar, que é o que nós temos sobretudo em Portugal. Mesmo nos barcos maiores são sobretudo empresas familiares, que os pescadores nem vêem como empresas: o que dizem é que tenho um barco. Depois há o crescimento da indústria em Setúbal, que teve impacto sobretudo com a saída de mão de obra. Mas por um lado teve um impacto positivo porque deu estabilidade a famílias que tinham profissões muito precárias e muito pobres. Várias famílias de pescadores viram os seus filhos melhorar de vida com a Lisnave, a Setenave… não uma qualidade de vida muito superior, mas para quem está habituado a uma incerteza endémica que a pesca tem. Essa instabilidade, quer ecológica, quer económica, de não saberes nunca o que vale o teu trabalho, podes trabalhar uma semana inteira e não teres retorno nenhum. De repente, os filhos terem um horário de trabalho, um ordenado fixo ao final do mês, isso foi muito importante para as pessoas. É raro falares com os pescadores e dizerem-te que querem que o filho vá à pesca, mas ao mesmo tempo ficam tristes quando dizem que a pesca vai acabar.
não conseguem ver como é que pode haver uma pesca sustentável, tendo em conta toda a conjuntura que existe à volta, quer da alimentação, quer da extrema regulação, quer do estado dos oceanos. Vão vivendo o seu dia-a-dia, mas não conseguem ver um futuro palpável.
Falas numa dificuldade do projectar o futuro, em que é recorrente dizerem que são os últimos. Não há mesmo nenhuma outra forma, é um baixar dos braços ou não?
Não é baixar os braços na medida em que eles continuam. A questão de perspectivar o futuro não é tanto para eles, é para os filhos na pesca, mas tentam incutir uma relação com a pesca e com o mar de alguma forma. Por isso é que muitos dos filhos dos pescadores acabam por ir à pesca desportiva, que acaba por ser um complemento aos ordenados, que também não são extraordinários. Há aqui uma espécie de repor a relação com o mar utilizando outros mecanismos. Não baixam os braços e compreendem que vai sempre haver pesca, nisso eles são muito claros, tem que haver enquanto houver mar e o mar não for de facto privatizado. Já não vai representar aquilo que representou outrora, pois têm uma noção de que hoje em dia a alimentação mudou muito, o consumo de peixe fresco é diferente. E não conseguem ver como é que pode haver uma pesca sustentável, tendo em conta toda a conjuntura que existe à volta, quer da alimentação, quer da extrema regulação, quer do estado dos oceanos. Vão vivendo o seu dia-a-dia, mas não conseguem ver um futuro palpável. Dizer que vai ser o fim pode ser contraproducente, mas para eles pode ajudar a materializar uma ideia de que pelo menos sabem o que é, pode ser o fim, mas sabem que é o fim. Um fim, mesmo que seja simbólico.
Nessa precariedade permanente, um dos aspectos que tens frisado nos pescadores é que se trata de uma precariedade que não é só económica…
A média de idade dos pescadores em Portugal é de 40, 50, 60 e muitos, que trabalham na pesca há mais de 20, 40 anos, alguns até 50, porque começaram a trabalhar aos 13 anos de idade. A pesca para eles nunca foi só uma profissão, nem só uma atividade económica para ganhar um dinheiro. É sobretudo um modo de vida e eles não querem necessariamente sair da pesca, até porque existe um ideário de liberdade associado à pesca. Curiosamente, apesar de toda esta instabilidade, não só económica, mas uma instabilidade permanente, fruto de diversos fatores, eles desejam ficar na pesca, porque de alguma forma encontram um escape a uma sociedade de controlo que a terra representa. Para eles a terra representa o controlo, as instituições, tudo aquilo com que não querem lidar. As instituições, os horários definidos. Falam muito no vício da pesca. Muitos deles até tiveram experiências na terra, mas depois dizem coisas como «galinha do campo, não quer capoeira». Para eles existe sempre o mar e a terra, e a ideia de que terra,
independentemente do trabalho que seja, é onde há a estrutura, a rigidez, e o mar não, pese embora que no mar, em qualquer dos barcos que andem, mesmo que seja nos barcos pequenos, existe um conjunto de regras, existem hierarquias, etc. Mas existe também uma ideia, claro que de um ar romanceado, que eles próprios têm da sua vida, de que eles não são sujeitos a, eles sujeitam-se porque: porque querem, porque gostam. Se não se identificarem com aquele mestre, com aquele barco, também saltam fora e vão para outro barco. Uma ideia muito mais de não ter amarras. Supostamente nós estamos em terra e temos um emprego, um contrato. E na pesca não existe um contrato, existe a inscrição marítima – que no fundo devia de ser uma espécie de contrato, mas a lei laboral na pesca tem interpretações muito específicas – mas existe essa ideia de que nada os prende ao barco. Existe essa ideia de liberdade forte, que muitas vezes entra em contradição com o que dizem, de que «isto não é vida para mim», «não consigo viver e desisto disto», que «é muito duro»…
Quais são hoje os elos que caracterizariam a comunidade piscatória e sobretudo os seus aspectos de resistência, as suas práticas e ferramentas?
O uso do termo «comunidade» hoje é sempre problemático e a ideia de comunidade tem vindo a ser muito debatida: o que é uma coisa comunitária ou não. E não existe uma única comunidade piscatória num único espaço. Eu vivo num bairro construído pela Casa dos Pescadores e lá maioritariamente vivem famílias de pescadores, mas à volta de Setúbal, em quase todos os bairros, tu encontras quem trabalhe nesta actividade ou tenha relação com ela. Partilham esta relação com o mar, que não é necessariamente uma relação só com a pesca: é ter os filhos que trabalham num emprego liberal das 9 às 5, mas que fazem questão de ter um barco de recreio, às vezes com imensas dificuldades, para poderem ir à pesca, ou passear com os filhos ao fim de semana, que não é como a malta dos iates. Passar um dia no rio, ir para o outro lado, acampar na zona dos Fuzileiros, é uma prática, um recreio diferente. E depois tens muita gente que trabalha com o peixe, que vendem na praça, tem peixarias ou algum tipo de comércio de congelados. Pode parecer uma ligação forçada, mas acho que denota uma relação muito forte com este elemento aquático e com esta necessidade de viver nesta relação.
Depois há práticas que podemos considerar de resistência, várias e sobejamente conhecidas: desde logo a fuga à lota, vender à candonga. A longo prazo pode ser pior para as reformas dos pescadores, porque não têm descontos para a Segurança Social, mas eu interpreto que isso é também uma forma de criticar o sistema. A forma como é vendido o peixe em Portugal num leilão, feito de cima para baixo, controlado por meia dúzia de grandes comerciantes ou de pequenos comerciantes a nível local, mas que têm um poder importante: ao definirem o valor do peixe definem o valor do trabalho de uma pessoa. Reparem, na pesca não existe um ordenado, existe o sistema de partes: os pescadores ganham conforme aquilo que apanham ou não. Há poucas profissões em que é assim e é um poder muito forte que os comerciantes têm. Podem comprar a dez cêntimos e vender a dez euros, não existe uma regulação (antes da União Europeia nunca poderiam vender o peixe por mais que 30% daquilo que tinham comprado)… Claro que existem depois as cooperativas de pescadores que conseguem também regular o mercado, e daí pode vir a ser uma forma de resistência, mas que está muito embrionária.
Os poderes locais e os agentes turísticos locais vem na paisagem o que se pode agarrar para se folclorizar. Na realidade não se está a fazer assim tão diferente do que se fez no tempo da outra senhora
Essas formas cooperativas e colectivas não se conseguem desenvolver?
Em segmentos muito específicos, sim. No caso da pesca da ganchorra, eles têm uma organização de produtores que funciona economicamente muito bem. Os pescadores vão ao mar e sabem o que é que têm de apanhar, imaginem 10 kg de conquilha, vão à maré já sabendo que vão apanhar não mais do que isso, porque têm um comprador. Porque a cooperativa, a organização de produtores, compra os 10 kg e vende ao comprador acordado. Estabelecem-se aqui relações entre os barcos e os grandes compradores, o que permite uma maior negociação, além de os preços serem tabelados – há um preço mínimo que varia consoante os bivalves – pelo que só vão ao mar quando têm uma encomenda. A organização de produtores permite aqui fazer a compra e fica com 1% apenas para gerir. Os bivalves são espécies que são muito valorizadas e com grande procura de mercado, sobretudo espanhol. Não saem ao mar à procura de peixe, ao contrário da sardinha, que podem não ter, ou das redes que deixam lá, que vão recolher e podem ter lixo e não ter peixe. No caso da sardinha existem algumas organizações que funcionam bem, mas, como é uma espécie cujo valor vai alterando muito conforme a época (e através da organização de produtores é sempre o mesmo preço), muitas vezes acabam por desistir, porque sentem que perdem dinheiro nos meses mais altos.
Depois há aqui também uma falta de confiança nestes meios de acção colectiva. Vêem-nas simplesmente como forma de resolver processos administrativos e não acreditam no seu poder efectivo, o poder político da acção colectiva. Pergunto-lhes porquê? Então queixam-se que os pescadores não são representados, que na comissão das quotas de pesca os pescadores não são ouvidos, quando há medidas que são completamente absurdas… «Ah, isso deviam ser as associações…» «Então porque é que vocês não participam activamente?» «O pescador é cada um para seu lado, isso já passou o tempo. No pós-25 de abril acreditávamos nisso, mas vimos que isso não foi possível…» Argumentos que no fundo sentenciam a ideia de se poder fazer qualquer coisa colectivamente na pesca. Parece que não faz sentido, contradizem-se a eles mesmos. Mas o que verifico é uma desconfiança permanente e, sobretudo, uma ideia de que o passado nos mostrou que isto não vai resultar. Mas acho que isso acontece em Portugal, não é só na pesca. Houve aquele boom, o PREC, vamos lá todos fazer coisas colectivas, e depois percebemos que se calhar não…
UM BILHETE-POSTAL SEM CLASSE
Por fim temos essa imagem identitária contraditória que se vende de Setúbal do pescador. Como é que vês a construção identitária de um elemento que é maltratado?
Isto está-se a passar um pouco do norte ao sul do país. Há um boom turístico e o que o turismo hoje procura é uma ideia de autenticidade, do pitoresco. Os poderes locais e os agentes turísticos locais vêem na paisagem o que se pode agarrar para se folclorizar. Na realidade não se está a fazer assim tão diferente do que se fez no tempo da outra senhora, apenas com outras formas. Parece um contra-senso, mas Setúbal tem um slogan que é «Setúbal, Terra de Peixe»: fala-se de peixe, há festivais de peixe, mas não se fala de quem apanha o peixe. É uma terra de peixe, mas não de pescadores. Existe uma ausência da figura dos pescadores, e não só dos pescadores, de todas as outras profissões relacionadas com este sector, os comerciantes, as peixeiras…
Aquilo que vende mais são os barquinhos na lota…
Porque ainda temos barcos com construção de madeira, mas isto é tudo uma grande hipocrisia. Existe todo este aproveitamento de colocar a pesca como bilhete-postal. É muito bonito Setúbal ainda ter barcos de madeira, é bonito termos ali um pescador a coser redes, mas não há preocupação de arranjar os armazéns de apetrechos. Porque o trabalho do pescador nunca é só no mar, há toda uma preparação em terra que é incrível. E, se forem ver os cacifos que são propriedade da APSS, vão ver a degradação em que aquilo se encontra, mas por fora tem uma pintura incrível, um grafiti muito bonito. Aquela coisa de higienizar e varrer para debaixo do tapete aquilo que não se quer visível, mas que depois se torna pitoresco. Para mim isso é muito indecente, não sou nada da ideia de sentenciar a pesca porque, enquanto houver um único pescador a pescar, nós não o podemos colocar no lugar do passado. Acho isso muito perigoso, e estes processos turísticos de aproveitamento da imagem, o que fazem dos pescadores é precisamente emblemas do passado. É algo que não se deve fazer a ninguém que viva hoje, porque é destituíres a pessoa de agência, é enquadrá-la num estereótipo e, quando esse estereótipo já não interessa, é varrido para debaixo do tapete, como acontece com os cacifos.
Ao falar do peixe este não fala, mas o pescador…
… fala e não está alinhado com aquilo que se diz sobre ele. Um processo de uma contradição gigante, tornar tudo numa mercadoria, até aquilo que somos, que é sempre uma coisa vivencial que se vai-se transformado. O problema nestes processos é que eles cristalizam uma ideia estanque da cultura piscatória, como se fosse de facto um bilhete-postal. Se vou ao Instagram, e digo olha aqui o que um pescador pôs, uma imagem de um pôr-do-sol… a quantidade de pessoas que dizem: «Ah, mas eles também usam telemóvel, têm facebook, têm internet no mar!»
Voltamos ao início da nossa conversa: parece que temos os ambientalistas a puxar para um lado, os pescadores para outro, o grande polvo por detrás desse mundo das instituições para outro… Cada um no seu canto, gerando uma dificuldade de cruzamento. Parece evidente esse desencontro da cidade com os pescadores.
Há sempre algum encontro, as coisas não são estanques. Mas há aqui uma questão, que para mim é muito evidente, apesar de para outras pessoas não ser, que é a questão de classe. Os ambientalistas são às vezes as melhores pessoas do mundo e com quem eu me dou muito, mas há uma questão de classe que muitas vezes eles não conseguem transpor na sua abordagem. E isso, tanto de um lado como do outro, cria resistências. Estas comunidades, na qual me incluo, não querem que os estudiosos venham dizer «como eu devo viver a minha vida». Isso claro que cria resistência. Depois há toda a questão de «nós não sermos aceites por termos impacto no ambiente», ou «porque somos uma classe baixa», «porque não temos educação», «porque dizemos caralhadas, se for preciso»… Eles sentem muitas vezes isso: é toda a questão de classe.
Texto de Filipe Nunes [filipenunes@jornalmapa.pt] e M. Lima [m.lima@jornalmapa.pt]
Foto [em destaque] de Vanessa Amorim
Artigo publicado no JornalMAPA, edição #26, Fevereiro|Abril 2020.
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