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Lendo: Gabriel Pombo da Silva e o Mandado de Detenção Europeu

Gabriel Pombo da Silva e o Mandado de Detenção Europeu

Gabriel Pombo da Silva e o Mandado de Detenção Europeu


Na recente edição impressa do Jornal Mapa demos conta do caso de detenção do anarquista Gabriel Pombo da Silva. Nos dias que se seguiram ao fecho de edição a situação jurídica e de detenção desenvolveram-se e aceleraram o previsto processo de extradição que era contestado. Após o Tribunal da Relação de Guimarães concluir que deveria ser extraditado e o Tribunal Supremo de Lisboa validar esta decisão restava apenas o Tribunal Constitucional. No entanto os acontecimentos que se seguiram após esta decisão mostraram inútil recorrer ao Tribunal Constitucional.

A situação decorreu num momento em que, atendendo aos concelhos que a ONU e a OMS fizeram aos Estados acerca dos cuidados e medidas a tomar no que diz respeito às prisões de forma a evitar surtos do vírus do covid-19, fora pedida a libertação de Gabriel ou a aplicação de medidas alternativas tendo em conta o facto de estar em prisão preventiva e de ter asma desde nascença. A resposta foi imediata. Apesar das provas médicas deste problema de saúde estarem no processo de todas as prisões por onde esteve ao longo dos anos, o juiz e o procurador afirmaram que este problema de saúde não estava suficientemente provado e se algo lhe acontecesse as prisões garantiam a devida atenção médica. Perante tudo isto o advogado julgou ser inútil recorrer ao tribunal Constitucional estando clara a intenção de entregar Gabriel Pombo da Silva ao Estado Espanhol a todo o custo.

Na manhã do dia 13 de maio Gabriel foi extraditado para Espanha e de momento encontra-se na prisão de Badajoz onde ficará 14 dias de quarentena obrigatória, após a qual deverá ser transferido para outra prisão.

Gabriel Pombo da Silva

Em 2004, o anarquista Gabriel Pombo da Silva, em fuga duma pena de prisão no Estado espanhol, era detido na Alemanha, ao abrigo dum Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido pelo Tribunal de Albacete. A luta que deu, na tentativa de não acabar detido, levou-o a ser condenado pelas autoridades alemãs a 13 anos de cadeia. Desses, cumpriu 8 anos e meio. A 16 de Janeiro de 2013, foi, ao mesmo tempo, libertado e extraditado para terras espanholas para cumprir três anos, sete meses e vinte e um dia. No final do tempo, em vez de o libertar, a juíza Mercedes Navarro, do Tribunal Penal de Girona, afirmando haver um cúmulo penal ainda por cumprir, manteve-o preso durante mais um mês, altura em que o Tribunal Provincial de Girona ordenou a sua libertação imediata, uma vez que a detenção infringia o «princípio da especialidade» (1). De acordo com esse princípio, Gabriel tinha sido extraditado para o Estado espanhol para cumprir determinada pena, tinha-a cumprido e não poderia continuar preso por causa duma acusação anterior. Depois de sair, Gabriel teve um último acto institucional e decidiu processar a juíza Mercedes Navarro por tê-lo obrigado a cumprir um mês sem razão legal.

Saiu a 16 de Maio de 2016 e, no que diz respeito à forma profunda de pensar, a prisão não tinha quebrado Gabriel. Continuou a escrever, a publicar, a conversar com outras pessoas, principalmente em território espanhol, mas também em Lisboa, por exemplo. A sua base era uma pequena quinta no município de Mos, perto de Vigo, onde vivia com a companheira. Por pouco tempo. A 24 de Janeiro, foram acordados por cerca de 60 polícias da Guardia Civil, que invadiram a quinta em busca de armas e explosivos. Aparentemente, uma pessoa a quem, tempos antes, tinham dado abrigo era agora acusada de traficar armas. Gabriel seria detido por associação, mas acabou por ser libertado quase de imediato, na falta de armas e de indícios de participação ou envolvimento de qualquer tipo nesse alegado tráfico.

Sentindo-se perseguidos, Gabriel e a companheira, já na companhia duma filha recém-nascida, decidiram atravessar a raia e instalarem-se em terras minhotas. De novo, a paz não durou muito. Em Junho de 2018, a juíza Mercedes Navarro convoca-o para Girona por causa da denúncia que Gabriel Pombo tinha feito contra ela. Desconfiado de que essa convocatória escondesse outros propósitos, receoso de que pudesse, por qualquer razão, acabar de novo detido, Gabriel não compareceu e tornou-se clandestino. Foi a Itália e rapidamente voltou para Portugal.

Já em 2019, a mesma juíza emitiu um novo mandado para a sua detenção, para uma pena de 16 anos alegadamente ainda por cumprir, esquecendo que, dos 54 anos de idade que Gabriel tem, 32 foram passados em prisões (no Estado espanhol, o cúmulo jurídico não permite que se ultrapasse os 30 anos de cadeia). Com uma variante quase sinistra de utilizar o conteúdo do próprio «princípio da especialidade» para afirmar que deixou de ter validade. A lei formula que, para que esse princípio se mantenha válido, ou seja, para que um detido, depois de libertado, não volte a ser preso por acusações passadas, esse indivíduo tem necessariamente de se ausentar do país requerente do MDE no prazo de 45 dias! Ao mudar-se para a Galiza, Gabriel não o tinha feito.

A 25 de Janeiro 2020, era detido em Monção para que, uma vez extraditado para o Estado vizinho, viesse a cumprir pena por crimes alegadamente praticados há mais de 20 anos, entre 1990 e 1997: «roubo à mão armada a agências bancárias», «extorsão a empresários» e «homicídio» do dono de uma casa de alterne. Está, neste momento, detido nas instalações da Polícia Judiciária, no Porto. Contestou a extradição. O Tribunal da Relação de Guimarães, no entanto, concluiu que deve ser extraditado. Após recurso, o Tribunal Supremo de Lisboa reconheceu essa decisão como válida e também indeferiu o seu pedido de libertação. Resta agora o Tribunal Constitucional, mas os advogados de Gabriel não contam que a decisão seja alterada.

Gabriel deverá ser extraditado e deverá ser detido pela juíza de Girona. No entanto, o movimento solidário que se tem unido (desde há muito, mas com empenho redobrado nestas alturas) confia que ainda há caminho jurídico possível para ser percorrido e também que todas as formas de apoio e solidariedade são bem-vindas, de forma a que Gabriel passe o menor tempo possível atrás de grades.

O caso de Vicenzo Vecchi, a que fizemos alusão na edição de Fevereiro de 2020 do Jornal MAPA, e o caso de Gabriel Pombo são dois exemplos de pedidos de extradição com base no Mandado de Detenção Europeu. Algumas notas sobre esse mecanismo.

Implementado em 2002 para substituir a extradição entre Estados, tida como demasiado morosa, o Mandado de Detenção Europeu (MDE), uma vez emitido, obriga um Estado membro da União Europeia (UE) a deter e transferir um suspeito ou uma pessoa já condenada para o país emissor, de forma a que possa ser julgada ou obrigada a cumprir a sua pena.

Dentro da UE não existe direito de asilo. Ou seja, uma pessoa que se sinta perseguida politicamente dentro do seu país não pode, por exemplo, pedir abrigo noutro país. Esta é uma questão mais ampla do que o próprio MDE, mas que este, pela forma expedita como trata a extradição, amplia muito esta realidade pré-civilizacional da UE. Até porque, ao contrário, da Interpol, por exemplo, cujas regras proíbem especificamente o seu envolvimento em casos políticos, o MDE não apresenta esse tipo de excepções.

Uma outra coisa fundamental é que o MDE reduz a acção legal a uma simples análise, a uma mera formalidade administrativa sem qualquer tipo de estudo para uma consideração completa do mérito da acusação, e não a um estudo das acusações e da sua validade. Ou seja, não permite uma recusa ao pedido de extradição pelo facto de considerar que não existem provas para a acusação. O que quer dizer que alarga o âmbito de aplicação a todo o território dos procedimentos de excepção e das leis liberticidas específicas a cada um dos Estados-membros.

O mandado de detenção não unifica a lei em toda a UE, e os padrões judiciais mantêm-se diferentes nos vários países. O caso de Puigemont é sintomático. Um tribunal regional da região alemã Schleswig-Holstein, em resposta a um pedido do supremo tribunal espanhol, decidiu que Puigemont não poderia ser extraditado para enfrentar a acusação de «rebelião». Um rapper maiorquino fugiu para a Bélgica em 2017, depois de um tribunal espanhol ter decretado que as suas letras insultavam a monarquia Bourbon, o que ia contra a lei. Em Setembro de 2018, um tribunal belga rejeitou a extradição. O romeno Alexander Adamescu é um dramaturgo e empresário que está detido em Inglaterra à espera que as autoridades britânicas o expulsem para o seu país natal. Sobre ele pendem acusações de corrupção que parecem politicamente movidas, e Adamescu teme que a extradição signifique a sua morte. O seu pai viu-se envolvido num processo semelhante e acabou por morrer, em circunstâncias ainda pouco claras, enquanto estava em prisão domiciliária. A decisão ainda está pendente, mas já se deu o caso de dois outros pedidos de extradição terem sido recusados pelos tribunais ingleses por causa das péssimas condições das prisões romenas.

O grande problema é que quando um MDE é revogado num país, não o é no resto dos Estados-membros da UE, violando assim o direito à livre circulação dos cidadãos europeus dentro do espaço Schengen. Numa UE sem MDE, os dramaturgos e os rappers sentir-se-iam muito mais seguros e menos limitados nos seus movimentos.


(1) O «princípio da especialidade» representa uma segurança jurídica de que não será julgada por crime diverso do que fundamenta o MDE, ou que não cumprirá sanção diversa da que consta do MDE: «A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.»


Written by

Teófilo Fagundes

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