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Lendo: Rede Popular de Apoio Mútuo: «a excitação de práticas de autonomia» no Porto

Rede Popular de Apoio Mútuo:  «a excitação de práticas de autonomia» no Porto

Rede Popular de Apoio Mútuo: «a excitação de práticas de autonomia» no Porto


Este artigo faz parte da série #PandemiaSolidária.

A Rede Popular de Apoio Mútuo do Porto está a viralizar acções solidárias desde as bases e da comunidade, deixando um rasto de vigor invulgar no que toca à capacidade de agir em colectivo. Em resposta à situação de emergência, a Gralha, a Rosa Imunda, o Núcleo Anti-Racista do Porto e o Grupo de Apoio à Habitação uniram esforços, em auto-gestão e mobilizando a solidariedade de muitas, dando corpo a um exemplo de autonomia ao qual ninguém fica imune.

 

Com o objectivo de «organizar acções colectivas e solidárias que respondam a necessidades vitais no contexto da crise do Covid-19», foi pela mão do Centro Social Autogerido (CSA) A Gralha que surgiu a Rede Popular de Apoio Mútuo a 19 de Março, um dia após o estado de emergência ter sido decretado em Portugal.

Pouco mais de um mês volvido e outros colectivos foram-se enredando. À data de publicação deste artigo, a Rede conta com três pontos activos de recolha e distribuição de bens essenciais, dinamizados pelo CSA A Gralha, pela Rosa Imunda e pelo Núcleo Anti-Racista do Porto (NARP). Para além de mais de cem cabazes que são distribuídos a cada semana, em dias diferentes, há take-away livre (de sopa e fruta), apoio logístico, esclarecimento de dúvidas relacionadas com a Covid-19, e muitas pessoas que vão contribuindo de formas diversas, desde a respigagem de alimentos, à limpeza dos espaços, passando pela distribuição, divulgação e entrega de donativos.

«Não é um projecto assistencialista ou de caridade, nem detém quaisquer ligações a empresas, partidos ou instituições do Estado», esclarece o colectivo de colectivos. O que leva esta Rede a arregaçar as mangas em tempos de confinamento pandémico é a «exacerbação da vulnerabilidade social e económica com o decorrer do estado de emergência» e a «estigmatização e inoperância das instituições» face às necessidades de tanta gente. E juntas faz mais sentido.

O Jornal Mapa começou por enviar algumas questões à Gralha, mas entretanto a Rede cresceu e recebeu respostas em triplicado.

«Unidxs por afinidades políticas, alguns destes coletivos e pessoas já colaboravam pontualmente na organização de eventos e frequentam-se umas às outras mantendo uma atenção e um diálogo entre si para o crescimento e a excitação de práticas de autonomia, e para o desenho de alternativas e de processos de resistência», explicam sobre o que liga as compartes desta Rede Popular de Apoio Mútuo.

Ouvimos então o CSA A Gralha, a Rosa Imunda e o Núcleo Anti-Racista do Porto sobre a construção de uma rede que permite «por um lado, fazer uma divulgação conjunta quer nas redes quer no boca a boca entre as pessoas que nos procuram, e por outro ativar o apoio mútuo entre xs envolvidxs de forma a fortalecer-nos e simplificar a logística».

Como tem corrido? Há muita procura? Das diversas acções que promovem (ponto de recepção/recolha de bens, take-away livre, apoio logístico, linha de apoio) quais é que, na práctica, se têm mostrado mais úteis e necessárias?

CSA A Gralha: O ponto de distribuição de donativos alimentares e não-alimentares tem tido uma crescente procura no CSA A Gralha. Na distribuição semanal das quartas-feiras têm aparecido entre 100 a 150 pessoas. Durante este primeiro mês foi estabelecida uma articulação informal com o Porto G, o Grupo de Partilha da Vida e a Autoestima (Braga) no sentido de apoiar no suprimento de necessidades vitais dxs trabalhadorxs do sexo. Devido à exacerbação da sua vulnerabilidade social e económica com o decorrer do estado de emergência, à estigmatização e inoperância das instituições e à nossa limitada capacidade de resposta, este ponto de distribuição passou a ser direccionado apenas para trabalhadorxs do sexo.

A linha de apoio para o esclarecimento de dúvidas relacionadas com o Covid-19 não tem sido utilizada. Eventualmente o formato escolhido (email) não será o mais confortável para as pessoas e terá que ser repensado. Isto porque outros formatos, como o facebook e linhas telefónicas, têm sido bastante procurados, inclusive na procura de apoio psicológico.

Melissa/NARP: O NARP, que já colaborava na rede no apoio a diferentes tarefas, começou a 23 de Abril com mais um ponto de distribuição e recepção de donativos. Uma das intenções futuras é poder avançar com uma Campanha Antirracista de Apoio Imediato à semelhança do que o Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC) e alguns coletivos e associações de Lisboa estão a fazer, agindo mais diretamente no apoio às comunidades racializadas através de articulações com associações locais.

No imediato decidimos focar a nossa acção contribuindo ativamente na Rede Popular de Apoio Mútuo e este facto relaciona-se com a afinidade e cumplicidade existente entre os coletivos que formam a REDE, mas também acontece pelo reconhecimento de que muitas das pessoas que têm procurado a REDE desde a sua criação são pessoas racializadas e/ou (i)migrantes com vínculos laborais precários ou inexistentes, as primeiras a serem ‘descartadas’ por parte de empregadores e que neste momento se encontram numa situação bastante vulnerável.

Núcleo Anti-Racista do Porto no CSA A Gralha à espera de doações de alimentos, frutas, vegetais e itens de higiene para a Rede Popular de Apoio Mútuo.

Dori/NARP: Observamos que há uma grande procura e o grupo de pessoas necessitadas aumenta a cada semana. Pessoas diversas, com diferentes e complexas realidades, mas que dialogam com a questão da vulnerabilidade social causada pela crise do Covid-19. Muitas pessoas são oriundas do Brasil e de países africanos. Conhecemos, no entanto, a precariedade a que eram submetidas quotidianamente antes da crise e que continuarão a viver no pós-crise. No contexto das entregas vamos conversando ligeiramente com as pessoas para perceber as suas necessidades, orientando-as em questões sobre outros apoios, bem como sobre questões de segurança e higiene acerca do coronavírus. Para além de estarem vulneráveis (ao corona) sofrem com outros vírus sociais (racismo, machismo, preconceito, desprezo…), o que revela a doença nefasta do sistema capitalista.

Rosa Imunda: A Rosa começou a recepção/distribuição de bens no passado dia 17 de Abril. Teve bastante procura logo nesse primeiro dia, sobretudo por pessoas (i)migrantes, outras que vivem na rua e também pelxs vizinhxs do bairro. Logo no início desta crise distribuímos papéis pelas mercearias próximas oferecendo o nosso apoio logístico, dado estarmos num bairro muito envelhecido, consequência da expulsão da grande parte das nossas vizinhas no processo brutal de gentrificação da cidade. Mas esse apoio ainda não nos foi solicitado.

No bairro onde estamos, as vidas para além do turismo, são precárias e fazem-se num desenrasque diário, informalmente e muito baseadas no apoio entre vizinhxs. Se esse tecido social já vinha sendo destruído ao longo dos últimos anos, com a crise atual e o fecho de muitos estabelecimentos o desamparo económico e social tornaram-se ainda mais gritantes.

Querem/podem dar algum exemplo da vossa experiência que ilustre o quão importante é existirem espaços e acções como estas?

O aumento do número de pessoas que têm aparecido nos pontos de distribuição de donativos alimentares e não-alimentares manifesta justamente a importância de acções solidárias e comunitárias (especialmente no contexto do estado de emergência) e da existência de espaços autónomos. Também importa destacar que a rede popular tem contado com o envolvimento de muitas pessoas que têm participado de diferentes formas (por exemplo, divulgação, entrega de donativos, respigagem, distribuição, preparação da sopa, limpeza, etc.). A informalidade, a independência e a não burocratização deste pontos tornam a sua acção muito ampla, porque pessoas que normalmente não cumprem os requisitos necessários aos apoios institucionais têm aqui um lugar aberto.

 

Dori/NARP: Há uma família de origem nigeriana a quem fazemos entrega ao domicílio e que vive num espaço desconfortável, sem qualquer dignidade humana. São 4 pessoas a viver num TO (incluindo duas crianças). Essa família é o reflexo de muitas outras que aparecem quotidianamente nos pontos de recepção. Mas essa família sofre com vários outros problemas, como a falta de apoio do SEF, da Segurança Social, da vizinha, do Estado. Foi obrigada a sair do seu país e é constantemente «convidada» e ameaçada para voltar a ele. São camadas de exclusão que revelam a necessidade vital de alimentação e material de higiene, mas não só. A solidariedade não deve ser uma caridade momentânea e passageira que só sabe olhar para o Covid-19 e que se esquece que outras doenças têm matado pessoas desde sempre.

Têm tido algum problema por causa das restrições impostas pelo «estado de emergência»?

Não temos tido restrições significativas no CSA A Gralha. Destacamos apenas que a polícia já apareceu quatro vezes por denúncia da vizinhança. Na Rosa não houve ainda qualquer restrição.

Como se organizam?
Cada espaço/colectivo tem o seu modo de organização.

Rosa: Na Rosa, que é uma associação e também uma casa, têm sido as habitantes da casa a organizar a divulgação, a cozinha, a recepção e a distribuição dos bens. Vamos agora iniciar uma colaboração com um restaurante que vai confeccionar refeições para distribuirmos e outras que vão fazer o transporte das mesmas. Também falamos com algumas mercearias do bairro que se dispuseram a dar os seus excedentes à Rede.

CSA A Gralha: No CSA A Gralha existem quatro grupos de trabalho para assegurar a concretização das tarefas que subjazem à dinamização da Rede Popular, designadamente a realização da respiga no mercado abastecedor do Porto, a organização dos donativos para a distribuição, a preparação do take-away livre e a prestação de apoio logístico. As pessoas que manifestaram a sua vontade e disponibilidade para se juntar à Rede Popular inscrevem-se nas tarefas e turnos dos grupos de trabalho, através dum documento partilhado.

Elaborámos um protocolo de higiene e segurança, que se encontra exposto nas três entradas do espaço, para salvaguardar o cuidado e o bem-estar de todxs. Nas montras do CSA A Gralha estão também disponíveis informações sobre o Covid-19, cuidados de saúde, habitação, segurança social, violência doméstica, migração, trabalho sexual, etc.

«Nos pontos de distribuição e recolha da Rede Popular de Apoio Mútuo existe um protocolo de higiene e segurança, de modo a salvaguardar o cuidado e o bem-estar de todxs.» Na foto: a montra d’A Gralha

NARP: O ponto de recepção e distribuição do NARP arrancou a 23 de Abril e a sua forma de organização será semelhante à da do CSA A Gralha. Aliás, o local é o mesmo assim como o protocolo de segurança e higiene. As diferenças são que o ponto de receção e distribuição funciona sempre ao mesmo dia da semana, às quintas, e que teremos 3 pessoas de manhã para receção dos bens doados e 4 pessoas à tarde para a organização e distribuição dos bens, e para limpeza do espaço. Não faremos respiga, já que por enquanto pretendemos aproveitar a respiga das quartas-feiras feita para o ponto de distribuição do CSA A Gralha.

Como estão vocês a subsistir nestes tempos incertos? Como vêem o futuro destes espaços colectivos e comunitários face ao que está a acontecer e ao que se avizinha?

Rosa: a Rosa estava já num período de reflexão e reestruturação pois como associação sempre foi precária e com a chegada do Inverno deixou de conseguir sustentar-se. Fechou portas em Dezembro para se repensar mas a situação atual colocou-nos num momento de urgente resposta. Como associação que tem desenvolvido a sua actividade no centro do Porto ao longo dos últimos 5 anos, achámos essencial ressurgir neste contexto para dar respostas independentes e imaginar alternativas à crise sanitária e económica que vivemos. Ainda não sabemos como continuaremos além deste momento.

CSA A Gralha: O CSA A Gralha é, desde o seu início, um espaço muito precário. Devido à situação excepcional do Covid-19, interrompeu as suas actividades regulares e deixou de conseguir garantir a sua sustentabilidade económica, sobretudo o pagamento das despesas mensais fixas que correspondem aproximadamente a 600 euros (renda, electricidade, água e internet). Por isso, avançámos com um apelo a donativos solidários para que seja possível dar continuidade ao CSA A Gralha. A sua reabertura e os moldes em que esta será feita permanecem ainda indefinidos.

Melissa/NARP: O NARP desde a sua criação, há pouco mais de um ano, que tem vindo a repensar e a reestruturar a sua forma de ação. Nos últimos meses temos sentido a necessidade de nos construirmos a partir de dentro, com formações internas, sessões de auto-cuidado e de focarmos as nossas atividades junto de grupos (coletivos, associações) e comunidades de pessoas racializadas tal como nós (o NARP é formado por pessoas racializadas, negras e indígenas), no centro da cidade do Porto e nas suas periferias. Estávamos num momento mais recolhido por assim dizer, mas sentimos a necessidade de acção até porque o que pretendemos é chegar às pessoas racializadas e sabemos bem, também por experiência e pelo que cada umx de nós está a passar neste momento a nível pessoal, que muitas das pessoas cujas vidas vão ficar ainda mais precárias serão as racializadas que, a juntar à racialização dos seus corpos, ainda se colam à pele as categorias de género e de classe.

Somos um coletivo anti-racista informal no sentido em que não somos uma associação ou um CSA. As nossas ações acontecem nos espaços de afinidade como o CSA A Gralha, a Rosa Imunda ou o A Leste, que são espaços importantes para o encontro, a partilha, o pensamento não-conformista, dissidência de corpos, vontades, vidas… Temos algum receio em relação ao futuro próximo, mas acreditamos na solidariedade, no apoio mútuo e noutras formas de acção coletivas.

E por último, numa tentativa de desambiguar o significado de «solidariedade», tantas vezes confundida com «caridade» e assistencialismo, o que é para vocês ser solidária?

A caridade não coloca em causa as relações hierárquicas, de dominação e de desigualdade sistémicas, ao contrário, funda-se e perpetua a organização vertical de classes sem a colocar em causa porque se alimenta dela. O apoio mútuo baseia-se na organização de base, procura a horizontalidade e funciona na interajuda (sic), desenhando estratégias para a activação de comunidades mais ou menos temporárias que repensem e ponham em causa a estrutura social e económica vigente.

Rede Popular de Apoio Mútuo. Como apoiar?

Rede Popular de Apoio Mútuo. Como apoiar?

 

 


Este artigo respeita a opção de grafia das entrevistadas nas respostas que enviaram por escrito ao Jornal Mapa.


Written by

Sara Moreira

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