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Lendo: Viver é preciso

Viver é preciso

Viver é preciso


Pouco passa das três da tarde e o sol primaveril convida a que a janela daquele segundo piso se abra para que entre o ar que ele aquece. Com o ar vêm os sons de mil obras, martelos pneumáticos, serras eléctricas, rebarbadoras, ou não estivéssemos na área da Rua de Santa Catarina que marca o início do triângulo das Bermudas do turismo do Porto, onde actualmente o negócio da reconstrução urbana se faz ouvir de forma quase ininterrupta. Na sede da Campo Aberto, “associação de defesa do ambiente que visa debater e promover o exercício da cidadania no domínio ambiental, nas suas dimensões natural, rural e urbana”, é dia de atendimento ao público e, de facto, alguém está a ser atendido quando lá chegamos para uma conversa com José Carlos Marques, seu presidente. Que nos observa que o que disser nesta entrevista é de sua inteira responsabilidade individual e não compromete em nada a associação.


Foi o próprio quem nos fez entrar para que não esperássemos nas escadas que o atendimento acabasse. Este termina com um convite para um 13 de Maio não mariano de passeio pelo Douro. Um convite que, não nos sendo dirigido, logo nos foi estendido.

José Carlos Marques (JCM) é um nome incontornável para qualquer pessoa que estude o movimento ecologista português. Pela tenacidade, pela permanência, pelo trabalho feito. Uma longevidade com raízes nos finais dos anos 60, quando se exilou «voluntariamente», como nos disse, para escapar à participação no exército colonial português. «Estava a fazer um curso superior e fui arrastando aquilo enquanto pude. Depois pareceu-me que já era um bocadinho demais e havia a possibilidade de ser chamado. Fui preparando as coisas. Arranjei uma bolsa de estudos em França e parti em Outubro de 1969».

Foi, então, nesse exílio que, pela primeira vez, teve contacto com as preocupações ambientais. «Quando saí de Portugal, em 69, não se falava praticamente disso». Aliás, tempos antes, quando a Cooperativa Pragma (não confessional mas fundada por um grupo de católicos progressistas opositores ao salazarismo), de quem era próximo, pensara organizar um colóquio sobre protecção da Natureza, «lembro-me de ficar admirado. Que raio de coisa é essa, protecção da natureza? Porque nessa altura a atenção da maior parte das pessoas com quem eu convivia estava voltada para a questão política e social».

«Na própria França, até pouco antes de eu ter chegado, o assunto ainda era muito pouco conhecido, embora houvesse já algumas coisas, mas eram muito sectoriais, minoritárias». Foi através do semanário satírico Hara-kiri Hebdo, antecessor do célebre Charlie, que primeiramente tomou contacto com estas questões. Um jornal «irreverente, contestatário, anti-sistema, que me parecia muito próximo do espírito pós Maio de 68, um bocado libertário».

«Como eu tinha estado ligado aos meios católicos progressistas, quando rompi, ou me afastei, dessa perspectiva, não estava disponível para me enquadrar noutra igreja, mesmo que fosse ateia. Era mais fácil ir ou para extrema-esquerda ou para a proximidade das perspectivas libertárias ou anarquistas do que propriamente para os partidos mais clássicos. Eu nunca fui anarquista mas, na transição dessa fase de católico progressista para outras fases, li uma obra sobre anarquismo de um filósofo francês que foi muito influente nos meios católicos, Emmanuel Mounier, e fiquei um pouco fascinado. Para mim, foi uma boa maneira de fazer a ponte duma certa cultura filosófica que eu conhecia para outra que eu desconhecia por completo».

O Hara-kiri Hebdo «tinha umas crónicas que me interessavam especialmente, de um colaborador, Pierre Fournier, que tratava justamente da questão ecológica. Nessa altura, a França começava a fazer a mudança para um processo de intensificação da produção de energia nuclear em centrais e ele falava e desenhava sobre muitos assuntos relacionados com isso, tinha uma boa informação sobre o que se passava nos Estados Unidos e em Inglaterra e acabou por me revelar a nomes e pensamentos importantíssimos nesta área».

Depois de França, o Brasil, em Agosto de 1971. Onde «de certa forma pus à prova a pouca informação de que dispunha na altura sobre a questão do ambiente e da ecologia, porque, no Brasil, as pessoas que eu conhecia directamente não estavam muito implicadas nisso. Conhecia, acima de tudo, pessoas com uma formação de esquerda, digamos assim, e discutíamos muito porque a perspectiva ecológica era, para elas, uma coisa fora de questão e achavam até que era uma ideia um pouco reaccionária, porque o que interessava era o desenvolvimento social, económico e político, a luta contra a ditadura e a revolução». JCM publica os seus primeiros textos, «não muitos mas alguns», sobre a questão ambiental, no Jornal Opinião, «um semanário de informação geral e, no fundo, de luta política, dentro das possibilidades em ditadura militar», que traduzia uma certa aliança entre a burguesia nacional anti-ditadura e a juventude mais radical e independente da esquerda heterodoxa.

Saído de Portugal com o que chama a «cultura da oposição à ditadura», onde se incluía a «crítica ao atraso do país», passou por França, onde a perspectiva crítica em relação ao modelo social «começava a revelar coisas que eu estava longe de saber – o esgotamento dos recursos, limites do crescimento – que me obrigaram a reformular toda a minha mentalidade oposicionista tradicional. Isto fez-me estar sempre numa minoria das minorias, tanto na ida para o Brasil, como, principalmente, no regresso a Portugal, em 1974, quando se estava a viver o deslumbramento do progresso e da abertura de perspectivas de desenvolvimento, cujo conceito já não partilhávamos nos mesmos moldes. Isso revelou até alguma dificuldade de entendimento com amigos com quem há cinco anos antes tinha plena identificação; embora mantivéssemos laços de amizade, as prioridades eram quase todas diferentes».

A perspectiva ecológica era, de facto, muito crítica em relação ao modelo de desenvolvimento, quer dos países ditos socialistas – incluindo maoistas –, quer em relação ao dos países do ocidente. «Era uma coisa que rejeitava tanto um modelo como o outro», o que tornava muito difícil a entrada do discurso ambientalista nos programas e nas linguagens dos partidos e dos movimentos que, na altura, se dedicavam, acima de tudo, à questão social e ideológica. «Os movimentos esquerdistas, principalmente de índole marxista, as poucas vezes que se preocupavam com isto era, em geral, para dizer que isso da ecologia era uma coisa reaccionária». Tudo se passava, assim, ao nível de grupos muito pequenos, com tentativas ainda muito embrionárias. «Os grandes movimentos sociais seguiam noutra direcção e passavam-nos um bocado ao lado. Ou passávamos nós ao lado deles.»

Uma das primeiras pessoas que em Portugal se dedicaram intensamente à questão ambiental e que, através do seu trabalho, escreveu muito sobre esses problemas, foi o jornalista do Século, Afonso Cautela, com quem, «não sei se ainda em França ou se já no Brasil, comecei a trocar correspondência com base nesse interesse comum, que eu descobrira graças à intermediação de um amigo que tinha ficado no interior de Portugal. Quando regressei, em Junho de 1974, uma das primeiras coisas que fiz foi procurá-lo. Nessa altura, já se estava a preparar, se é que não estava já em andamento, uma entidade, ainda informal, chamada Movimento Ecológico Nacional, muito ligada a ele e a um outro jornalista chamado António Carvalho. Este movimento teve uma existência um pouco acidentada e durou pouco tempo, mas teve um papel seminal muito importante».

Ainda em 1974, regressou ao seu Porto natal, onde surgia o GAIEP – Grupo Autónomo de Intervenção Ecológica do Porto. Reuniu nos primeiros tempos nas instalações das Edições Afrontamento, que começara, há pouco, a editar a colecção de livros Viver é Preciso, cuja temática era retomada pelo GAIEP em termos de intervenção prática. No roteiro 1974: 40 anos de ecologia a partir do Porto, que JCM nos ofereceu, pode ler-se que entre os primeiros documentos produzidos pelo GAIEP, um deles intitulava-se Porquê a agricultura biológica e outro As centrais nucleares: uma ameaça à saúde pública, “onde se denunciava que ‘a energia nuclear pacífica não passa dum sub-produto da energia nuclear bélica’ […]. A partir de Fevereiro de 1976, o GAIEP passa a reunir na Rua da Boa Hora, em espaço cedido pelo NPEPVS [Núcleo Português de Estudo e Protecção da Vida Selvagem]. O primeiro número de Alternativa (pequena mas pioneira revista que o grupo passou a editar) refere essa como a sede provisória do GAIEP. O n.º 3, de Outubro de 1977, refere o nascimento da Cooperativa Pirâmide (Cooperativa Cultural para o Desenvolvimento de uma Sociedade em Harmonia com o Universo) e dá como endereço para a correspondência o n.º 50 da Rua do Breiner, sede da Cooperativa. A revista Alternativa diz-se agora publicada pelo GAIEP ‘integrado na Cooperativa Pirâmide’. O envolvimento desta na preparação do Festival Pela Vida e Contra o Nuclear, que viria a decorrer em 21 e 22 de Janeiro de 1978 em Ferrel e Caldas da Rainha, era então intenso.”

Nuclear não, obrigado

Apesar de, por cá, a questão nuclear ainda não se pôr de forma premente, era já central neste tipo de movimentos. «O Movimento Ecológico Português logo à partida era declaradamente anti-nuclear», por exemplo, e já tinha até realizado, em Buarcos, um encontro onde «eu apresentei uma comunicação chamada Por uma moratória nuclear – não sei se era esse exactamente o título – ou seja, por um adiamento da instalação de centrais nucleares enquanto não fosse o assunto bem estudado e bem debatido. Uma forma de agir noutros países, não fui eu quem inventou. Aliás, se não erro, já desde antes do 25 de Abril o tema foi abordado em artigos de Afonso Cautela e de Delgado Domingos na imprensa portuguesa». Tudo mudou rapidamente e, no dia 15 de Março de 1976, o povo de Ferrel, perto de Peniche, marchou sobre o local onde decorriam trabalhos preparatórios para a então projectada central nuclear e «retirou de lá a única coisa que existia na altura já em função da central, que era um posto de observação meteorológica ou outra pequena estrutura».

Em 1976, no n.º 2 dos Cadernos de Ecologia e Sociedade intitulado ‘Não à industrialização selvagem’, a par de artigos como ‘Desenvolvimento com Baixo Consumo Energético’, o editorial clamava “Somos Todos Moradores de Ferrel”, na luta contra a energia nuclear. Em Junho de 1977, foi lançado um manifesto sobre a política energética e a opção nuclear, assinado por cento e dez cientistas e técnicos ligados ao problema nuclear que debateram a nível nacional estas questões. «Alguns contactos que houve com algumas pessoas que eram mais formais, académicas, também se processaram nessa área. Por exemplo, o professor Delgado Domingos [falecido em 2014], que devia ter trinta e poucos anos nessa altura e era professor do Instituto Superior Técnico, tinha estado nos Estados Unidos, onde conheceu o movimento anti-nuclear, e trouxe essa perspectiva com ele».

Para se conhecer o processo com profundidade, JCM aconselha-nos o livro A maldição das bruxas de Ferrel, de Mariano Calado, um «romancezinho que é um romance histórico… é romance, mas a parte descritiva de acontecimentos relativos a Ferrel é histórica, incluindo os personagens que aparecem, como o Afonso Cautela, o Delgado Domingos e os argumentos que eles apresentam no livro são os que realmente apresentaram à população de Ferrel». Aqui se percebe que, apesar do movimento ser autónomo e espontâneo, «já havia uma ligação de intelectuais, académicos e outros ecologistas ao povo de Ferrel» que acabou por se fortalecer.

Se bem que a opção nuclear tivesse, desde o início, uma oposição clara de quem se movimentava nestes meios, foi a questão concreta de Ferrel que uniu mais gente dispersa à volta de objectivos comuns e que acabou por trazer muito sangue novo para a luta ecológica. «Curiosamente, em 1976-77, o Movimento Ecológico Português, na sua tentativa de se afirmar como movimento, já estava numa trajectória declinante – nem sei se chegou a ser fundado juridicamente. O ambiente mental da época era muito tenso em termos de conflitos de ideias e de orientações políticas ou ideológicas e isso também se reflectia nas pessoas que estavam neste Movimento, porque nem todas tinham um grau de motivação idêntico, nem todas punham a tónica nos mesmos aspectos. O equilíbrio era difícil. E, embora todas aquelas pessoas tivessem durante algum tempo considerado que estavam próximas e tinham alguns interesses comuns, a verdade é que havia tensões. E houve alguma fragmentação. De tal forma que, em 1977, quando se estava a preparar um festival antinuclear de Caldas da Rainha e Ferrel, o Movimento já estava um pouco isolado».

Parecia que a iniciativa do Movimento Ecológico Português estava a cair num certo vazio. «Mas com esta questão do anti-nuclear, que era ao mesmo tempo mais vasta e mais sectorial, verificou-se que, afinal de contas, havia um certo eco noutros sectores de fora, digamos assim, pessoas que não estariam interessadas em agricultura biológica ou nisto ou naquilo mas que, na questão nuclear, estavam bastante mais atentas, mais interessadas e mais decididas». A par, claro, de uma enorme repercussão mediática.

Em Janeiro de 1978, nas Caldas da Rainha e em Ferrel, realizou-se esse Festival Pela Vida Contra o Nuclear, que reuniu cerca de duas a três mil pessoas. Decorreram debates, espectáculos e outras actividades, nos quais participaram nomes como Zeca Afonso, Vitorino, Pedro Barroso, Fausto ou Sérgio Godinho. «Com surpresa – mais de uns do que de outros –, podemos dizer que esse festival foi um êxito, porque, em coisas em costumavam aparecer dez, quinze ou vinte pessoas, apareceram mais de duas mil». Parecia ter havido a ultrapassagem duma fase, mas, «depois desse momento, o que houve de continuidade manteve-se muito minoritário. Foi um momento que tirou esses grupos do anonimato mas, ao mesmo tempo, foi temporário e o ritmo e grau de envolvimento da sociedade continuaram muito lentos».

No Roteiro anteriormente referido pode ler-se: “Foi nesse Festival que começou a ser divulgado o primeiro número da nova revista A Urtiga, designada como ‘uma iniciativa Viver é Preciso‘. Ela aparece claramente inscrita no movimento universal de regresso à terra, contra o nuclear e pelas energias suaves. Os seus artigos e temas prosseguem, aprofundam e ampliam o que já tinha sido feito pela revista Alternativa. Do n.º 1 ao n.º 7 a Urtiga, sediada no concelho de Lagos embora editada via Lisboa, segue basicamente esse rumo. A partir do n.º 2 de Maio de 1978, e sobretudo do n.º 4, de Setembro de 1978, passa a ser feita com larga participação da Pirâmide e, depois, da iniciativa Renascimento Rural. Pode dizer-se, aliás, que essas são várias das metamorfoses do GAIEP, vindo do Porto e em itinerância pelo país. A partir do n.º 7 a Urtiga muda por duas vezes de formato e, embora mantendo os temas iniciais de ecologia, energia e regresso à terra, passa a dar mais espaço a temas de uma visão que entronca na filosofia da Ordem do Universo, fazendo sobressair a questão do cuidado alimentar numa perspectiva próxima do movimento macrobiótico”.

Em 1982, o projecto nuclear foi abandonado. A partir daí, «aparentemente, em Portugal, o assunto deixou de ser falado, porque percebeu-se que o governo tinha renunciado à construção de centrais nucleares e muita gente pensou que agora já não se tratava de uma situação preocupante. Se bem que, logo em meados dos anos 80, ressurgiu, mas agora por lados de Espanha, não por via de Almaraz, mas por via do plano de construção de um cemitério nuclear em Aldeiadávila (perto de Salamanca). Eu já não acompanhei muito este processo mas aqui no Porto havia um grupo, o Terra Viva, que tinha uma costela libertária, que em 1984-85 fez um trabalho bom sobre o assunto. Conseguiu-se evitar os piores aspectos do projecto de Aldeia d’ Ávila mas depois também não se falou muito do assunto. De vez em quando falava-se de Almaraz, dos incidentes que ocorriam, mas era uma coisa muito ao de leve e criou-se a ideia errada – e isto é também e sobretudo uma autocrítica – de que, como em Portugal não haveria central nuclear, parecia não haver nada a fazer por aqui».

Aproveitando esse refluxo, o lobby nuclear voltaria nos primeiros anos do século XXI, «com um grupo de engenheiros e um empresário português de origem francesa (ou que tinha estado em França)», munidos de um discurso que afirmava que o nuclear era a forma de resolver a crise energética e tornar o país auto-suficiente, ao mesmo tempo que defendiam uma nova e maior capacidade de garantir a segurança das centrais. «Durante algum tempo, aquilo andou a ser falado. Havia, mesmo na imprensa e em meios com certo poder de influência, quem tivesse ressuscitado a oposição tenaz à ideia, mas também havia quem fosse naquela canção». Foi, aliás, a propósito disso que, em 2006, JCM aproveitou os festejos dos trinta anos da luta de Ferrel para publicar A maldição das bruxas de Ferrel, de Mariano Calado, nas suas Edições Sempre-em Pé, depois de o ter lido num fôlego graças a uma «providencial insónia» que imediatamente o convenceu de que estava perante aquilo que sentia ser necessário publicar na altura.

«De qualquer forma, demos prova de vida. Na altura, escrevi algures que um movimento que estava dormente mostrou que está vivo e, quando for preciso, acorda de novo. Entretanto, e infelizmente para os japoneses, aconteceu Fukushima. E aí morreu definitivamente o lobby pró-nuclear português.. Esse lobby passou ao silêncio quase completo». E, como anteriormente e pelas mesmas razões, o movimento anti-nuclear voltou à dormência. «De vez em quando lá aparecia um acidente em Almaraz, e falava-se e tal, mas não passava daquilo».

«Até que, mais recentemente, surgiu esta questão, que também está a surgir em França e noutros países, relacionada já com um outro aspecto: não contentes com estarem a utilizar uma tecnologia que é evidente que tem um calcanhar de Aquiles imenso, estão a tentar prologar a vida das centrais (por motivos de rentabilização e de não ter de investir em novas centrais de raiz, que seriam sempre difíceis de construir porque cada vez mais a opinião pública é sensível a isto). Aquilo que devia durar trinta anos, agora tentam que dure cinquenta. Em Espanha também já se chegou a essa fase. E chegou a Almaraz». Um aspecto que acordou de novo o movimento, nomeadamente com a revitalização do Movimento Ibérico Anti-Nuclear que, em Junho passado, promoveu uma manifestação em Almaraz que repetirá este ano. Para JCM, a presença nestes movimentos e a insistência no combate ao nuclear são cada vez mais importantes, à medida que o mundo caminha para o esgotamento dos combustíveis fósseis sem que se pense na alteração dos níveis de consumo energético. O que pode fazer correr o risco de dar uma aparência de justificação a vagas constantes de argumentação pró-nuclear que tentem introduzir as valências dessa indústria como alternativa energética.

Uma espécie de pedra no charco? «Passando a uma perspectiva do movimento ecoambiental no seu conjunto, «é verdade que há uma perda de capacidade e de presença do movimento ambiental na sociedade, como noutros movimentos». Perdeu-se o discurso revolucionário e contestatário que alguns grupos tiveram em certas épocas, «mas também não têm um discurso de conformismo. Continuam a apresentar perspectivas críticas, numa linguagem talvez mais aceitável para a maioria das pessoas e dos meios de informação, mas que continua a ser uma proposta de outro tipo de organização».

Freak chic eco-friendly

Tomando as palavras que Franklin Pereira utilizou para fazer uma retrospectiva sobre a revista Alternativa para a exposição 1974: 40 anos de ecologia a partir do Porto, este referia as críticas ao “saber ‘esotérico’ de especialistas”, pois que “separa o criador do produtor, eterniza a contradição entre trabalhador intelectual e trabalhador manual, perpetua a transmissões de um poder de classe”. Hoje, dizemos nós, não há uma semana que não tenha uma ‘oferta eco’, um ‘workshop verde’, uma ‘feira bio’, nalgum dos muitos espaços ‘alternativos’ que acabam por ser reféns ou promotores de um nicho de mercado ‘freak chic’ onde afinal não tem lugar a ‘partilha’ desses saberes e vivências e onde o alvo é mais o urbano endinheirado que o vizinho local. Ou não será bem assim? São já nacos da sociedade do espectáculo ou bocados de um processo que pode ser transformador de mentalidades e comportamentos?

«Acho que é um pouco de tudo. Há coisas sérias e menos sérias, mais profundas e menos profundas, mas não creio que se possa fazer uma classificação global desses fenómenos e é bastante claro que actualmente há uma aparência de controlo social em que o movimento ecológico e alternativo e ambiental e de permacultura parece perder capacidade de intervenção, ou até mesmo de proposta de alternativas. Isso em parte é verdade, mas em parte também é resultado de um refluxo histórico (em relação aos anos 1960-80) que estamos a experimentar. O que hoje domina é a finança. Mas mesmo esse domínio da finança é talvez uma fuga para a frente em resposta a essa turbulência dos anos 60 e 70. E não se sabe o que pode acontecer daqui a um ano, dois ou dez. Aliás, movimentos como o Occupy, nos Estados Unidos, ou os movimentos dos Indignados em França e Espanha, são coisas que mostram que a situação continua muito instável e o que hoje parece estar arredado do horizonte pode ser que, de um momento para o outro, fique completamente na ordem do dia». Algumas coisas que hoje nos parecem ingénuas e pouco lúcidas podem, afinal, estar a «formar as pessoas que daqui a dez anos vão ter um papel fulcral para dar um passo em frente».

Talvez não haja, de facto, forma de trazer um assunto para um público alargado sem que esse assunto, por muita radicalidade que possa ter na origem, abra portas que o deixem aprisionar pelos mecanismos integradores do capitalismo. Mas, para JCM, o resultado não tem necessariamente de ser um desastre. «Depende muito da perspectiva de cada um e da situação concreta que se possa analisar. O que se passa é que, nesse domínio, há coisas que são fraudes, há coisas que são greenwashing e há coisas que são boas, que são positivas, que, mesmo com as suas limitações, são coisas que mostram um caminho certo. Por exemplo, uma cooperativa de produção de energia solar, como a Coopérnico… é uma cooperativa e, só por sê-lo, isso já é positivo. E, depois, é também positivo o campo a que se aplica, que é a produção de energia alternativa a todas as formas de energia mais negativas, como a nuclear, ou a dos combustíveis fósseis, uma das responsáveis pelas alterações climáticas. Mais ainda quando se dedica à energia solar! Ou, por exemplo, uma loja de produtos biológicos… pode ser uma loja de produtos alimentares como outra qualquer, tem de vender, tem de ter margem de lucro e, aparentemente, não tem nada de relevante no aspecto social, mas sempre é positivo que se situe numa linha de produção biológica. Embora também esta tenha as suas limitações, visto que entretanto, com a oficialização da agricultura biológica e o seu reconhecimento ao nível dos Estados e da Comunidade Europeia, por exemplo, se fizeram algumas transigências a critérios que são discutíveis».

No Mundo e no Porto: em redor da sustentabilidade

Em 2007, JCM iniciou a edição dos Cadernos Schumacher para a Sustentabilidade, abordando, nos dois primeiros cadernos, a questão da sustentabilidade de um ponto de vista ambientalmente consequente e onde é expressa uma dupla preocupação: Transformar a Economia e Criar Cidades Sustentáveis. «Cada um destes cadernos, e eu acabei por ficar pelos quatro, eram traduções de uma colecção inglesa. Tratava-se de sínteses breves de toda uma matéria que tinha sido já objecto de vastíssima bibliografia. Esta ideia da proposição de uma de economia diferente da dominante, em termos eco-ambientais, tem uma longa bibliografia, na qual, aliás, há coisas mais e menos interessantes. Este livrinho [Transformar a Economia] aborda essa temática e apresenta-a de uma forma muito sintética e, portanto, tem um papel muito positivo ao colocar essa bibliografia ao alcance de muita gente que nem sonharia com isso».

Num país ainda embebecido pelas aparentes benesses do mundo financeiro, onde a economia é um tabu intocável, um livro deste tipo teve pouco eco. O segundo volume, Criar Cidades Sustentáveis, teve mais procura. «Houve alguns factores… a discussão ligada ao ordenamento do território, os PDM das cidades, etc., tornaram certos sectores mais receptivos a esse tipo de coisas». Depois, porque o livro foi parar a uma bibliografia para «um curso ou um concurso de magistrados», a procura chegou mesmo a esgotar a edição. «O que isto revelava é que nalguns meios judiciais já existe a percepção de que o estado em que se encontra a urbanização do mundo, e de Portugal em particular, tem muito a ver com questões ligadas à criminalidade. A sociologia, aliás, começou assim. O Durkheim veio logo com essa questão da anomia, ou seja, o desvio comportamental que leva à criminalidade e à punição e à prisão está intimamente ligado à degradação das condições de existência nas cidades e há, aparentemente, alguns juízes que já se deram conta disso».

Agir e pensar a cidade é, então, um dos focos da Campo Aberto. Num livro publicado em 2006, Reflectir o Porto e a Região Metropolitana do Porto, pode encontrar-se uma quantidade considerável de documentos da própria associação (análises, comunicados, pareceres, intervenções de vários tipos, etc.), mas também alguns de colaboração com outras associações. Uma boa parte deles é sobre o período 2001-2005, quando se estava a realizar no Porto o processo de discussão pública de revisão do PDM que estava em vigor e que viria a dar origem ao PDM de 2006, para o início do segundo mandato de Rui Rio. «A filosofia geral mantém-se toda muito actual e, na nova revisão do PDM do Porto, ainda teria muita utilidade, se os técnicos ligassem alguma coisa a isto».

«Neste livro, estávamos a tratar de questões numa perspectiva da evolução interna própria aos habitantes, à população residente, ou quando muito na área metropolitana do Porto e ainda não havia sequer sinais de que viria a acontecer este surto turístico. Está aqui a perspectiva que tínhamos sobre a cidade e a sua sustentabilidade, mas não está o fenómeno, que foi surpreendente para toda a gente, da explosão turística. Aplicando a mesma grelha de leitura ao que se está a passar, poder-se-ia chegar a conclusões interessantes. É evidente que há aspectos que podem ser positivos neste fenómeno. Por outro lado, a Câmara do Porto indigna-se com quem critica o excesso de turismo, porque diz que é um negativismo e que a cidade está toda a beneficiar com isso. Claro que há todo um problema económico que é importante. Mas resta saber que beneficiários são esses. Haverá de todo o tipo. Os principais se calhar não são aqueles que mais precisariam, mas o facto de haver algum dinamismo económico não deixa de ter alguns aspectos positivos. Simplesmente, e disso nem vale a pena falar porque não será compreendido pelos que estão embriagados com o maná turístico, o próprio fenómeno turístico assenta numa coisa, o lowcost, que é totalmente insustentável, que é baseado em combustíveis fósseis e no sector da aviação, o principal sector nos transportes emissor de gases de efeito de estufa, onde existem problemas sérios e que tem escapado até agora de algumas exigências feitas a outros sectores. Há quem encolha os ombros e se limite a dizer: há de aparecer o avião solar…».

Decrescimento

Já no final da nossa conversa, abordando uma recente palestra no encontro CidadeMais do Porto, em 2016, promovida pela Sociedade de Ética Ambiental,em que JCM falou de Simplicidade Voluntária, Complexidade Impositiva e Saídas do Labirinto Ambiental, acabaria por nos dizer que «as questões de estilo de vida são centrais nos movimentos ecológicos a partir dos anos 60, mas podemos até dizer que o foram, anteriormente, em movimentos percursores, que ainda não eram bem o movimento ecológico moderno. E, se recuarmos mais, podemos dizer que, desde a antiguidade, há linhas de pensamento que insistem nos aspectos da simplicidade, da comunhão com a natureza. Um estilo de vida simples e sem grande abuso de recursos e de materiais e de objectos e mercadorias terá forçosamente um menor impacto sobre a natureza».

Ligações com a ideia de decrescimento? «A meu ver, o problema da teoria do decrescimento é que as palavras podem induzir em erros, em falsas interpretações. Havia um autor de que eu gostava muito, Ernesto Bono, que dizia que as palavras são umas fantásticas rainhas, que, portanto, induzem ilusões. A ideia mais útil que tem essa corrente está presente desde o início do movimento ecológico com as críticas aos limites do crescimento. Porque colocar a ideia de que há limites de crescimento é imediatamente pôr a ideia de que se calhar não é possível continuar a crescer em tudo e há coisas em que é mesmo necessário decrescer».

«Agora, de facto, a palavra ‘decrescimento’, que é talvez de finais dos anos 80, ganhando mais dimensão em meados dos anos 90, pode lançar alguma perturbação na discussão, porque pode levar a pensar que é preciso fazer com que tudo decresça e nada deva crescer. Então, aí, põe-se um problema, a nível social, que decorre do facto de haver grandes camadas de população mundial, mesmo em países aparentemente prósperos, que, em vez de terem um consumo excessivo, têm, aparentemente, um sub-consumo ou têm carências graves em vários aspectos da sua existência. E pode introduzir aí um ruído. Os que não são inteiramente pobres, mas percebem que têm carências graves que acham que podem melhorar se houver maior crescimento económico, podem ficar desconfiados a pensar que se quer que voltem a passar fome».

«E, depois, não é só isso. É também o facto da dependência total das populações modernas em relação a rendimentos monetários. Na maior parte dos casos em termos de emprego e salários. Ora, se o emprego é condição para que as pessoas possam comer, não havendo crescimento cria-se a ideia imediata de que não haverá emprego e, não havendo emprego, não há rendimento monetário e, não havendo rendimento monetário, as pessoas passam fome. Portanto, há aqui um ruído que se introduz com esta designação de ‘decrescimento’. Embora, se alguma pessoa se aproximar dos textos dessa corrente e for examiná-los, verifica imediatamente que aí todas essas dúvidas têm respostas claras. Mas o nome não é o mais bem escolhido e, de certo modo, até pode empalidecer os aspectos mais positivos dessa corrente que já estavam, aliás, presentes desde os anos 60».

«Se calhar, é mais importante definir o que não deve crescer e o que deve crescer. Em termos um pouco simplistas, é preciso que as energias de tipo mais suave cresçam e que as outras diminuam. Ou então, é preciso que a agricultura biológica cresça e que a agricultura química decresça. Digamos que o rótulo ‘teoria do decrescimento’ pode induzir uma fixação num dos aspectos e tornar menos visível a complexidade que esta questão tem».

Renascimento Rural

Um dos aspectos mais interessantes ao olharmos para o percurso de José Carlos Marques, dos colectivos e indivíduos dos anos 70-80, é a sua perspectiva agro-ecológica. Em concreto, um grupo com um ideário comunitário: o projecto Renascimento Rural, que assentou arraiais numa aldeia do interior do concelho de Lagos (Algarve). Em 1978, fruto da colaboração da colecção de livros Viver é Preciso, das Edições Afrontamento, coordenada por JCM, foi criado na aldeia de Barão de São João, o Centro de Ecologia e Alternativas Renascimento Rural. Campos de trabalho dedicavam-se à construção de uma casa ecologicamente integrada em pedra, taipa e adobe, onde havia lugar à gestão de uma biblioteca e da revista A Urtiga, quase simultânea a este projecto.

Mas no mercado alternativo dessa aldeia de Barão de São João, muitas das comunidades neorurais ou quintas orgânicas que actualmente todos os meses aí se cruzam, talvez já não se recordem ou sequer conheçam essa experiência precursora. «No final dos anos 90, mas sobretudo já neste século, começaram a aparecer uma série de pessoas, grupos, iniciativas muito ligadas à questão da permacultura. E é sobretudo através da internet que surgem. Provavelmente nem sabem que houve experiências como estas, anteriores. Há uma continuidade que é desconhecida para eles, mas que é real e efectiva, mesmo a nível internacional, porque os criadores da permacultura inseriam-se, nos anos 80, neste movimento em que nós estávamos também envolvidos. Embora tivessem exprimido uma síntese original, que tem um rótulo próprio, que tem uma etiqueta, que é a ‘permacultura’, na verdade encontramos permacultura, não estruturada e compactada mas de certa forma dispersa, em todas estas publicações que nós aqui temos», constata-nos JCM, olhando em redor as estantes do Campo Aberto.

E, de facto, «estas correntes relacionadas com a agricultura biológica e a biodinâmica já existiam antes de haver propriamente o movimento ecológico. Já existiam desde o princípio do século, mas eram muito sectoriais, pouco conhecidas. Houve movimentos, grupos, comunidades, que construíram e fizeram trabalhos muito próximos do que viria a ser a permacultura e também a proximidade entre os aspectos ligados à energia, à agricultura, ao território e à própria filosofia social, isto é, a ideia da protecção ambiental intimamente ligada à da transformação social».

Livros e Poesia

A vida de JCM dedicada à questão ambiental traduz-se, em igual medida, na atenção que dá à poesia (a publicação de DiVersos já faz 20 anos), fazendo a ponte com o “sentimento da natureza na cultura portuguesa”. Quisemos saber se será cada vez mais difícil transmitir o amor da e à natureza pela poesia e pelas artes – e pensa-se sobretudo nos jovens – e, comparativamente, mais fácil apelar às suas preocupações com a numerologia e estatística do desastre ambiental na sua versão de espectáculo e entretenimento. JCM respondeu que «a arte e a poesia afastaram-se da natureza porque as sociedades se afastaram da natureza. Enquanto no século XIX a Revolução Industrial e as suas destruições suscitaram a resposta romântica, que valorizou a natureza e começou a alertar para as destruições da era industrial (Wordsworth, Keats, na Inglaterra, Henry David Thoreau, John Muir nos Estados Unidos, por exemplo), o início do século XX embriagou-se com a máquina e o maquinismo. Daí o modernismo nas artes e na literatura, mas também as grandes carnificinas das duas guerras mundiais. Hoje a situação começa a reequilibrar-se, com alguns poetas e artistas que retomam o sentimento da natureza como fonte do seu trabalho, embora ainda timidamente. Continua a predominar a desolação do mundo exclusivamente humano. Mas a própria arte e poesia sensíveis à natureza têm de incorporar o desastre ambiental e a sua enorme dimensão, pois hoje integrar a natureza na arte e na poesia é também integrar o sentimento de perda da natureza e não só o da sua exaltação e louvor – embora este último continue a ser a fonte principal. A que serão os jovens mais sensíveis? Difícil responder. Neste momento, o apego à electrónica e aos seus aparelhos parece predominar, mas há também a reaproximação à natureza, por outro lado».

Do extenso percurso editorial, para além das publicações como A Urtiga e outras associadas a diversos grupos por que passou ou colaborou, JCM foi responsável, logo em 1974, pela colecção de livros Viver é Preciso que integrou os Cadernos de Ecologia e Sociedade, das Edições Afrontamento, a cuja origem esteve associado. Em 2004, fundou as Edições Sempre-em-Pé. «No meu percurso editorial estão quase ausentes alguns dos que mais me marcaram – ainda não consegui lá chegar. E antes de mais o cronista e desenhador Pierre Fournier que foi quem, nas páginas do semanário Hara-Kiri Hebdo, nos anos 1969-72, me abriu à compreensão do que é a ecologia e do movimento ecológico moderno que então alastrava, como contraveneno, nos países mais industrializados. Mas se traduzi e publiquei Bernard Charbonneau e o seu belíssimo O Jardim de Babilónia foi graças a Fournier, que me o revelou. E posso mesmo dizer que os mais marcantes nunca teriam aparecido no meu caminho sem essa revelação inicial. Destacaria ainda assim Aldo Leopold e o seu A Sand County Almanac, que traduzi e editei com o título Pensar Como Uma Montanha ou Rachel Carson, e o seu The Sense of Wonder, que traduzi e editei com o título Maravilhar-se: reaproximar a criança da natureza. Mas faltam muitos outros ainda por editar… Outros o farão. Para mim o tempo é já escasso».

 

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Teófilo Fagundes

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