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Lendo: Turvar as águas

Turvar as águas

Turvar as águas


Com a bênção dos nossos governos e um rasto de destruição ambiental e humana em terra, a indústria mineira prepara-se para avançar sobre o fundo dos oceanos, de que todos dependem, apesar de um desconhecimento assumido acerca das consequências e impactos.

 


Esqueçam o Espaço, o Mar é a nova fronteira. Depois de décadas de expectativa, corporações e fundos de investimento preparam-se para o que esperam seja o próximo grande desafio: a exploração dos recursos naturais do fundo oceânico. Embalado pelo furor crescente em torno das reservas minerais contidas no fundo do mar, acompanhado naturalmente pelos costumeiros discursos acerca de desenvolvimento económico, prosperidade comum e, mais recentemente, sustentabilidade, o olhar das elites globais, sempre ávido, vira-se para os oceanos, que cobrem 70% da superfície terrestre, e para as “riquezas” que estes escondem.

A primeira exploração mineira em mar alto está prestes a avançar, no mar de Bismarck ao largo da Papua-Nova Guiné (PNG) no Pacífico. A empresa à frente do projecto Solwara 1, a Nautilus Minerals Inc, anunciou o início da prospecção para o primeiro trimestre de 2019. Isto apesar da contestação e resistência de comunidades locais e grupos ambientalistas, apesar da ausência de estudos de impacto ambiental ou social credíveis, dos apelos e reservas da comunidade científica e do amontoar de indícios que apontam para prováveis impactos duradouros ou mesmo irreversíveis em alguns dos habitats mais frágeis e menos estudados do globo. Igualmente preocupante é a assumida falta de entendimento em torno de possíveis efeitos de escala ou cumulativos da exploração generalizada. Ainda assim, e apesar de dificuldades técnicas e financeiras, dos consequentes adiamentos enfrentados e certamente aquém de uma análise e debate alargados acerca de rumos e alternativas, o projecto que se quer a primeira operação mineira em águas profundas continua a avançar. A isto talvez não seja alheio o interesse com que é seguido pela indústria extractivista global e pelos mercados financeiros. O projecto e as potencialidades que estes grupos esperam que abra têm sido recorrentemente descritos como uma nova corrida ao ouro. Nesse sentido, o Solwara 1 é visto por muitos como um teste iminente à viabilidade imediata de um novo ramo da indústria extractivista, a mineração em mar profundo – “Deep Sea Mining” ou DSM em Inglês. Curiosamente, por aqui pode também passar o futuro do arquipélago dos Açores. Estranho? Infelizmente, menos do que possa parecer. O Governo Português e a União Europeia estão a dar sinais claros de que as águas em torno do arquipélago podem vir a ser mineradas nos próximos anos.

20000 Léguas Submarinas

Antes de mergulharmos a fundo, é importante percebermos de que se fala, quando falamos de mineração em mar profundo (DSM). Existe actualmente uma indústria mineira costal cujo foco reside especialmente na extracção de areias e gravilha, a par de explorações localizadas de diamantes, enxofre e outros minerais. Comparada com a quantidade de explorações em terra, o número de explorações costeiras é diminuto, mas suficiente para que os seus efeitos sejam evidentes. A exploração é feita em águas pouco profundas junto à costa, essencialmente com recurso a dragas. Consequentemente, estas explorações comportam impactos ambientais e sociais consideráveis, documentados em vários estudos, nomeadamente em torno da viabilidade de populações marinhas afectadas directa e indirectamente pelas mesmas. É possível que haja um aumento significativo no número deste tipo de explorações costeiras, dado o interesse crescente na mineração de fosfato (nódulos de fosforitos), central à indústria de fertilizantes, e especialmente nos hidratos de metano, blocos de metano e água, formados em certas condições de pressão e frio, encontrados a profundidades entres os 350 e 5000 metros, e que alguns analistas e sectores estão a tentar posicionar como um “combustível do futuro”, um tema a que iremos retornar nesta série. A mineração em águas profundas pelo contrário refere-se à exploração de minério em alto mar, teoricamente a profundidades entre os 500 e 7000 metros. Actualmente o interesse reside sobretudo em três tipos de depósitos minerais: os nódulos de manganês ou nódulos polimetálicos, as crostas cobaltíferas e os sulfuretos metálicos. Os três tipos de minério têm características diferentes – os nódulos são aglomerações minerais geralmente semelhantes a uma batata em tamanho e forma geral, dispersos por vastas áreas do fundo oceânico; as crostas são camadas metálicas que se formam ao longo de milhões de anos nas encostas de elevações submarinas por deposição de partículas minerais, em áreas onde as condições locais impedem a acumulação de sedimento; os sulfuretos são depósitos minerais formadas pela acção de fontes hidrotermais que ao longo do tempo dão origem a campos com montes que podem atingir dimensões consideráveis, mas em áreas relativamente definidas do fundo oceânico – mas com um elo vital em comum: inevitavelmente, a sua extracção será sempre altamente destrutiva e pior, as consequências alargadas, são completamente desconhecidas.

Há Mar e Mar.

É importante notar que a maior parte das aglomerações destes três tipos de depósito ocorre em zonas distintas, das bacias oceânicas onde estão dispersos os nódulos de manganês, às cristas oceânicas formadas pelos limites das placas tectónicas onde surgem os campos de fontes hidrotermais que produzem os depósitos de sulfuretos metálicos, às elevações submarinas onde se agregam as crostas cobaltíferas, espalhadas pelos oceanos – 30,000 só no Pacífico – a dispersão destes recursos pontua todo o fundo oceânico. Se o Pacífico e a PNG são neste momento as áreas para onde se viram as atenções, é fundamental perceber que há outros desenvolvimentos em curso, nomeadamente no Atlântico, que envolvem a União Europeia e vários governos, de entre os quais o Português. Os Açores encontram-se precisamente no centro de um dos maiores focos de interesse no Atlântico, com vários campos de fontes hidrotermais a Sudoeste, ao longo da Dorsal Mesoatlântica, crostas cobaltíferas a Norte e, em menor grau, nódulos de manganês a Sul e Este do Arquipélago, todos confirmados. Foram esses campos que levaram a mesma Nautilus Minerals a fazer pedidos de prospeção e pesquisa de minerais ao largo do arquipélago em 2008. Embora, de acordo com informação recente fornecida pelo governo os mesmo tenham caducado, a recorrente referência a esses pedidos feita pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) no contexto do pedido expansão da plataforma continental nacional – efectivamente uma extensão da ZEE (Zona Económica Exclusiva marinha, onde um Estado detém soberania sobre o solo, subsolo e coluna de água) a ser deliberada pela Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU até Março de 2019, que conferiria soberania sobre os recursos do fundo oceânico (e apenas sobre estes, excluindo a coluna de água) de uma área adicional, com mais do dobro da extensão da primeira – ou a apresentação feita por Ana Vitorino ao Atlantic Council, onde os hidratos de metano e a mineração submarina são dois dos quatro pilares de uma renovada política cooperativa com os EUA, revelam que o interesse do governo Português em explorar ou concessionar estes recursos é real. Se a isto somarmos o papel central de Portugal e do arquipélago no projecto piloto da União Europeia de mineração submarina, o Blue Atlantis, e a recém assinada Declaração de Belém, que estabelece um protocolo de exploração a vários níveis do Atlântico Sul entre a UE, o Brasil e a África do Sul, percebemos que, para Portugal, a mineração submarina, longe de ser uma questão abstrata ou distante, é antes urgente e muito concreta.

Iremos retornar a estes pontos ao longo desta série, abordando especificamente os desenvolvimentos em torno dos Açores e da política do mar nacional em maior detalhe.

Só sei que nada sei.

A dispersão destes depósitos implica que num cenário futuro de exploração de qualquer deles, mas especialmente pensando na exploração simultânea dos três, os focos de destruição e de perturbação ecosistémica estariam espalhados um pouco por toda a parte, aumentando o potencial de efeitos cumulativos e de escala imprevisíveis. Embora a tecnologia necessária para extrair nódulos de manganês e crostas cobaltíferas esteja ainda em desenvolvimento, em relação aos sulfuretos metálicos estamos no limiar da sua aplicação. A Nautilus é a empresa que mais avançou nesse processo, mas existem várias no seu encalço. Enquanto aguarda a entrega do navio de apoio, que irá servir como base de operações em alto mar, está prestes a testar os veículos – enormes máquinas industriais do tamanho de uma casa – que já estão na PNG e que irão proceder à mineração propriamente dita: um cortador auxiliar, que preparará o terreno para o cortador principal, que reduzirá os montes de sulfuretos a fragmentos, e a recolectora, que os sugará em direcção ao navio. John Wiltshire, um cientista e professor da Universidade do Havai sintetiza a operação desta forma: “um depósito de sulfuretos metálicos é algo do tamanho da Super Dome [estádio de futebol americano] e basicamente vai chegar ali com uma broca gigante e reduzir aquilo a nada. (…) é 100% destruição e cria uma nuvem que vai afectar a área envolvente e os organismos que lá vivam.” Esta visão aborda duas questões centrais a este debate: primeiro, a destruição inevitável de habitats únicos – literalmente, devido ao seu isolamento no fundo mar, cada campo contém potencialmente espécies que não existem em mais lado nenhum do planeta – que se contam entre os mais frágeis e menos estudados do mundo, responsáveis, aquando da sua descoberta, por uma revolução no nosso entendimento da biologia, e segundo, o quase total desconhecimento acerca dos impactos localizados e sistémicos deste tipo de exploração. Jeff Drazer, presidente do departamento de Biologia Oceanográfica da mesma universidade, conclui: “Acho que simplesmente não sabemos o suficiente acerca dos ecossistemas do fundo marinho [para avançar]”. Uma ideia ecoada por muitos outros peritos e pelo menos parcialmente por Michael Lodge, o Secretário Geral Adjunto da ISA, a International Seabed Authority (Autoridade Internacional dos Leitos Oceânicos): “É verdade que não sabemos o suficiente acerca dos impactos na biodiversidade e vida marinha quando se minera”. Uma opinião com um relevo particular, já que a ISA tem responsabilidades específicas sobre a preservação e gestão de todo o leito oceânico, para lá das 200 milhas marítimas que configuram as ZEE das nações costeiras, cujos recursos estas controlam.

Lei do mar, lei da selva… o Bravo Mundo Novo dos oceanos.

Criada em 1996 pela UNCLOS (United Nations Conference on the Law of the Sea ou Conferência das Nações Unidas para a Lei do Mar), apenas a ISA pode conceder licenças de exploração em águas internacionais e, apesar de os regulamentos que enquadrarão esta e outras questões não terem sido concluídos, já foram concedidas 26 licenças, com várias outras pendentes. Esta situação não é casual: já em 1982, provisões introduzidas pelos EUA e Reino Unido às então discussões acerca do que viria a ser Lei do Mar estabeleciam que uma futura autoridade (a ISA) teria um prazo de dois anos, após um pedido de exploração, para estabelecer um regulamento, caso contrário seria obrigada a conceder uma licença provisória, à luz do enquadramento legal existente. Ademais, a secção XII da UNCLOS impõe que os quadros legais nacionais, que regulam as ZEE, fossem pelo menos tão robustos na sua proteção do ecossistema marítimo como o enquadramento definido por esta. As provisões introduzidas em 1982 pelos EUA, bem como a sua não ratificação da UNCLOS, reflectiam uma perspectiva – capturada em relatórios de segurança nacional norte-americanos também de 1982, entretanto disponíveis e desclassificados – de que, no que toca à DSM, a Lei do Mar “não cumpria com nenhum dos [seus] objectivos”, nomeadamente, porque poderia deixar a futura exploração de minério à mercê da “acção imprevisível” da ISA. Dito de outra forma, porque a matriz da Lei do Mar pressupunha os oceanos e os seus recursos como “património comum da humanidade”, e impunha a “prevenção, redução e controlo da poluição”, a “protecção e conservação dos recursos naturais e protecção da fauna e flora marinha” como princípios base, impondo finalmente a todos o estados signatários uma obrigação comum de “proteger e preservar o ecossistema marinho, incluindo ecossistemas raros ou frágeis”. Percebe-se porque é que Estados – e industrias – com interesse na exploração destes depósitos pudessem querer diluir e subverter o processo… Como consequência, a estrutura regulamentar está ainda em desenvolvimento e explorações que se situem dentro da ZEE de um país podem avançar de acordo com a regulamentação desse estado, tornando “Estados fracos” como os do Pacífico, um alvo muito apetecível para a indústria. Não é por acaso que uma maioria das concessões da ISA e dos projectos “nacionais” se encontra no Pacífico. A área é especialmente rica em recursos mas, crucialmente, muitos dos estados que a ocupam, alguns com vastas ZEE determinadas pela existência de ilhas e arquipélagos, são especialmente frágeis à pressão de um sector muito poderoso, para mais apoiado por alguns dos Estados mais ricos do planeta. Voltando a Jeff Drazer, este conclui: “estou desencorajado pela forma como isto está a ser abordado. (…) a impressão com que fico é que muitas empresas mineiras estão a explorar a pobreza das nações em desenvolvimento no Pacífico e vão entrar nestes países facilmente, explorar os recursos minerais e pagar ao governo uma percentagem ínfima dos lucros em troca de danos ambientais duradoiros”. Em contraste com estas e inúmeras outras análises, a indústria pinta um cenário bem diferente, de oportunidade, prosperidade partilhada e exploração sustentável. O CEO da Nautilus Minerals, Mike Johnston, em entrevistas recentes, falava nos “impactos [ambientais] significativamente reduzidos” e “enormes vantagens” desta indústria para o ambiente. Já sobre os impactos em comunidades, a propósito do início dos testes, afirmava: “Estamos encantados por encetar testes submersos. Estes vão resultar na entrada de dinheiro e investimento na economia da Papua-Nova Guiné e no emprego de papuanos que irão utilizar tecnologia de ponta, que são alguns dos benefícios da mineração submarina”. É importante reter que o foco na Nautilus Minerals, aqui, resulta apenas do facto de ser a empresa com o projecto mais avançado. Existem muitas outras empresas e projectos público-privados em desenvolvimento, mas este tipo de discurso é no essencial transversal a todos. É evidente que a Nautilus Minerals e a indústria extractivista de que faz parte estão profundamente empenhadas em estabelecer a imagem de uma nova indústria, que, oferecendo resposta aos desafios do futuro, corta com o perfil de abusos e desastres ambientais, corrupção, violações de direitos laborais e desrespeito pela vida humana a que o sector mineiro está profundamente associado. O facto de a Nautilus e outros operadores potenciais na mineração em águas profundas não terem ainda iniciado operações não nos impede de tentar extrair conclusões em relação à credibilidade dos argumentos empregues por estes agentes, de sustentabilidade, impactos reduzidos, práticas éticas ou prosperidade partilhada, centrais à sua promoção deste novo tipo de exploração. Nesse sentido, o que está a acontecer no Pacífico e na Papua-Nova Guiné em particular, bem como a sua história, constituem-se como pano de fundo ideal contra o qual se pode testar as asserções da indústria.

Para cada aldeia, uma cultura diferente.

A Papua-Nova Guiné é um país único. Em mais nenhum lugar do mundo se encontra tamanha diversidade cultural, com 850 línguas faladas entre os seus 7,6 milhões de habitantes – um quarto das línguas reconhecidas mundialmente – e um vasto mosaico cultural capturado na expressão “para cada aldeia, uma cultura diferente”. Ao mesmo tempo, é um dos maiores repositórios de biodiversidade do mundo: estima-se que as suas florestas tropicais contenham 7% da reserva de biodiversidade mundial. O “Gigante do Pacífico”, como é apelidada na região, ocupa metade da segunda maior ilha do mundo, a Nova Guiné, e cerca de 600 outras ilhas menores, com uma área total duas vezes superior ao Reino Unido. Inúmeras áreas do seu território permanecem completamente desconhecidas. Associada no imaginário popular aos famosos Pássaros do Paraíso popularizados por David Attenborough, é de há décadas a esta parte – nomeadamente desde que declarou independência da Austrália em 1975 – foco de um interesse muito diferente por parte da indústria extractivista. As suas florestas tropicais são exploradas para madeira – dedicada à exportação – e frequentemente substituídas por plantações de óleo de palma, mas é a riqueza mineral, com o ouro e cobre à cabeça – é o 11.º produtor mundial de ouro –, e a de hidrocarbonetos que têm acicatado maior interesse. A este panorama vem agora juntar-se a mineração em águas profundas. De acordo com as Nações Unidas, os 40 anos de história desde a independência da PNG têm sido “dominados pelo sector extractivista”. Um elo comum a estes projectos tem sido a ênfase numa narrativa de desenvolvimento nacional e social sustentáveis, de que as palavras de Mike Johnston são um bom exemplo; mas como se compara esta com a realidade?

Piratas das Caraíbas XXI: A “Maldição” dos Recursos.

Infelizmente, mesmo a análise mais superficial parece apontar precisamente para o inverso. A PNG é descrita como um caso clássico da chamada “maldição dos recursos”. Não só a proliferação de projectos extractivistas não trouxe a prosperidade prometida, como parece ser o motor principal para o crescimento da desigualdade no país e um foco de tensões sociais que frequentemente redunda em violência, a que somam impactos ambientais e de saúde pública gravíssimos. O país é considerado um dos mais pobres do mundo, estimando-se que 75% da sua população dependa da agricultura para a sua subsistência. 40% da população vive com menos de 1 dólar por dia. A desigualdade tem vindo a disparar desde os anos 90, período que coincide grosso modo com o chamado boom de recursos na PNG, com uma minoria a enriquecer, enquanto as condições de vida dos restantes estagnam ou pioram. Algo a que certamente não será alheio o facto de a PNG ser considerada uma das nações com maiores índices de corrupção do globo. A frágil infraestrutura pública está subdesenvolvida e vários indicadores chave em termos de saúde estão em declínio. O Relatório de Desenvolvimento da ONU, que citámos atrás, apesar de assinalar algumas melhorias, conclui “Apesar de 14 anos consecutivos de crescimento económico [o PIB da PNG passou de 3 biliões de dólares em 2002 para 17 em 2014], não houve alterações significativas nos níveis de pobreza do país. Pelo contrário, o nível de desigualdade no país aumentou”.


This land of Mine

A ausência de sinais evidentes da prosperidade prometida infelizmente é apenas um dos muitos problemas que têm acompanhado a proliferação de projectos extractivistas na PNG. Tensões sociais potenciadas por estes projectos tornaram conflitos, frequentemente violentos, entre comunidades, governo e empresas comuns. De acordo com costumes tradicionais inscritos em lei, cerca de 97% do território da PNG ainda hoje é detido titularmente pelas comunidades e a relação com a terra é absolutamente central à identidade destas. Este dado tem estado na origem de um sem número de conflitos, onde o Estado central – que frequentemente detém participações nos principais projectos extractivistas, criando um claro conflito de interesses – tem assumido um papel central e, no mínimo, controverso. O conflito na ilha de Bougainville entre 1988 e 1998, em torno da mina de Panguna, representa o momento mais negro de um padrão que infelizmente tem vindo a repetir-se. A maior exploração de cobre do mundo à época, explorada por uma subsidiária da Rio Tinto, esteve no centro da eclosão de um conflito que duraria uma década e que se estima terá custado a vida a 20,000 pessoas, de uma população de 180,000. O conflito incluiu um bloqueio naval da ilha e o uso de forças paramilitares e militares, responsáveis por um sem número de violações de direitos humanos, que incluíram aldeias destruídas, tortura, assassinatos, violações e massacres. Estas operações foram, pelo menos parcialmente, financiadas pela empresa mineira e pelo Estado Australiano, que forneceria helicópteros, pilotos, munições e treino militar. Este padrão de associação de interesses e colusão entre o governo central, empresas internacionais e outros Estados, com a Austrália à cabeça, habitualmente em oposição a comunidades locais, tem-se repetido um pouco por todo o território da PNG, em torno de projectos extractivistas. O uso de forças paramilitares, as mobile squads, para proteger estes projectos – estas também são usadas para guardar os centros de detenção de refugiados que a Austrália ainda mantém no país – e “pacificar” a população local é corriqueiro, bem como a associação destas forças a um catálogo de horrores, amplamente documentado. Entre outros, o mais recente foco de tensão surgiu na província de Hela, onde está centrada uma das maiores explorações de gás natural do mundo, o LNG PNG, a cargo da Exxon, mais uma vez em parceria com o governo da PNG e com financiamento quer do governo dos EUA, quer da Austrália. Em 2012, um relatório da Jubilee Australia, uma organização não governamental focada no combate à pobreza, concluía: “é muito provável que o projecto venha a exacerbar a pobreza, [leve] a um aumento da corrupção e resulte em mais violência”. O relatório revelou-se previsivelmente presciente e, inevitavelmente, forças paramilitares e o exército estão no terreno a proteger o projecto… das comunidades em cuja terra é construído.

Décadas de devastação ambiental.

Estes são apenas exemplos de entre os mais graves ou mais recentes, dos muitos casos verificados. Mas se o quadro pintado em termos de progresso e prosperidade social associados ao sector extractivista na PNG é essencialmente caracterizado por tons escuros, já em termos do impacto ambiental do sector, o tom é decididamente negro. O mesmo relatório de 2014 da ONU, define o impacto ambiental da indústria, com o sector mineiro à cabeça, como “massivo” e o “o mais gravoso para o desenvolvimento humano sustentado” do país. Um estudo recente da desflorestação no país, feito ao longo de dois anos e meio com recurso a imagens de satélite, revelou um cenário de destruição muito além das piores expectativas: estima-se que, ao ritmo actual, metade da floresta tenha desaparecido em 2021. A par deste desastre, estão os efeitos directos e indirectos dos muitos projectos de exploração mineira e de hidrocarbonetos, todos sem excepção ligados a impactos ambientais graves ou muito graves e duradouros. Outro estudo recente listava seis sistemas aquáticos na PNG, de entre doze estudados, como estando entre os mais degradados do mundo, devido à actividade mineira. Entre estes estão os rios Ok Tedi e Fly, que oferecem talvez o mais triste exemplo do que a ganância e irresponsabilidade corporativas e governativas produzem. Entre 1984 e 2013, 80000 toneladas por dia (2 biliões no total) de dejectos mineiros foram despejados directamente no Ok Tedi, intencionalmente, pela BHP, que não quis assumir os custos de reconstruir a barragem, danificada por um terramoto em 1984, que os retinha. O resultado foi um dos maiores desastres ambientais da história, que devassou uma área de 3000 km2 ao longo dos 1000 km de rio afectados, impactando 50,000 pessoas, que viverão com os efeitos pelo menos durante décadas. A BHP “ofereceria” o projecto ao governo, seu parceiro, em troca de imunidade relativa às sua consequências. No seu livro, Mining Capitalism: The relationship between Corporations and their Critics, Peter Kirsch, antropólogo da Universidade de Michigan, aborda anos de pesquisa dedicados ao estudo do impacto do desastre do Ok Tedi. Nele compara a noção de “uma mina responsável” à busca “de um animal mítico no qual as pessoas acreditam porque ouviram relatos da sua existência, apesar de ninguém afirmar tê-lo visto”, concluindo que “Em várias ocasiões foi-me pedido que apresentasse um exemplo positivo de um projecto mineiro que cumpriu com os seus compromissos para com as comunidades locais: protegido o ambiente, salvaguardado direitos laborais, assegurado uma distribuição equitativa dos benefícios e preparado adequadamente o encerramento da mina e a reabilitação do local.(…). No entanto, não existem minas que cumpram com eles”.

No mar, como em terra?

O legado da indústria extractivista (e mineira em particular) na PNG é claro: após décadas de extracção de recursos e muitos biliões em exportação, o país não só se mantém como um dos mais pobres mas agora também mais corruptos e desiguais, do mundo, a que se soma um rasto de devastação e degradação ambiental e cultural. Pese a especificidade do contexto, não é um retrato incomum. A PNG é um microcosmo de um padrão que se repete pelo globo fora. Por todo o Pacífico, em África e na América Latina ou na Ásia, situações semelhantes são infelizmente a regra e facilmente identificáveis. Na realidade, ao contrário do que se possa pensar, o padrão não é sequer radicalmente diferente nos países ditos desenvolvidos, e aparentemente está prestes a estender-se aos oceanos. O processo a que estamos a assistir em torno da mineração em águas profundas oferece todas as indicações de que estamos perante uma extensão dessas práticas: existe um consenso, admitido inclusive pelos seus promotores, de que não sabemos o suficiente acerca dos riscos e impactos para avançar, e no entanto avança-se. Fazemo-lo, para mais, num momento em que sabemos que o ecossistema global, cuja miríade de relações interdependentes apenas agora começamos a reconhecer, nunca esteve tão frágil. Apesar destas incertezas ou do momento delicado que vivemos, o discurso em torno do tema é indistinguível do que hoje permeia a indústria mineira em terra, ou a dos hidrocarbonetos – prosperidade comum, progresso, sustentabilidade – embora saibamos que esse pouco mais é que marketing: às enormes fortunas geradas pela industria, contrapõe-se essencialmente devastação cultural, social e ambiental, especialmente no Sul global. Apenas num mundo onde um dos maiores fabricantes de armamento, a BAE Systems, pode afirmar sem ironia que “se dedica a diminuir o impacto ambiental das suas operações” é que pode fazer sentido que um sector que se dedica a extrair depósitos minerais que demoraram milhões de anos a formar, possa descrever o seu modelo de negócio como “sustentável”. Quando olhamos para os agentes e processos por detrás e em torno das empresas a encabeçar a mineração submarina, como a Nautilus e outras, encontramos os da indústria mineira. Os principais accionistas da Nautilus, por exemplo, são um magnata russo do sector mineiro, um bilionário do Omã do sector mineiro e petrolífero e a Anglo American, um dos gigantes do sector. A empresa responsável pelo altamente contestado estudo de impacto ambiental (EIA) do projecto Solwara, a Coffey Natural Systems, também assegurou o EIA do projecto PNG LNG da Exxon e o da reabertura da mina de Ok Tedi, bem como o de outros projectos da Chevron, BHP ou Rio Tinto. A sua empresa mãe, a TetraTech, um gigante da engenharia, colabora em milhares de projectos mineiros e tem como principal cliente o governo dos EUA, que por sua vez investiu 3 biliões de dólares no PNG LNG. Para além destes EIA, a Coffey também se especializa em gestão de programas de desenvolvimento, gerindo vários na PNG, financiados quer pelo governo australiano – que também investiu no PNG LNG – quer por empresas dos sectores para os quais realiza estudos de impacto ambiental. Não é por acaso que a Nautilus foi criada na Austrália e posteriormente registada no Canadá – onde o estão registadas 75% das empresas mineiras do mundo e onde um relatório suprimido da própria indústria, a qualificava como a pior em termos ambientais e sociais –, dois países onde o sector mineiro tem um lobby fortíssimo e peso desproporcionado na economia. As “impressões digitais” da indústria global que preside ao “saque” da Papua Nova Guiné cobrem a Nautilus. A ligação entre extractivismo, entendido como a extracção de recursos de qualquer natureza que, não processados ou parcialmente processados, se destinam à exportação e o colonialismo é umbilical e por demais patente na PNG. Esta formulação garante o máximo de retorno ao extractor, deixando uma fracção ínfima dos dividendos e normalmente máxima das consequências na origem. Para funcionar exige uma disparidade de poder entre as partes, que na era moderna é assegurada através de Estados fracos e redes de clientela, que permitem controlar e contornar empecilhos ao “progresso”, como o interesse local ou nacional, a vontade popular ou considerações excessivas com o ambiente, admitindo que hoje em dia se fale sem equívoco da realidade do neoextractivismo e neocolonialismo. A mineração em mar profundo parece querer remover completamente esse empecilho último, colonizando agora o leito oceânico, em sentido claramente contrários aos ideais e ideias por detrás da Lei do Mar, para benefício de uma minoria e prejuízo de todos. À semelhança do que o Acordo de Paris e as suas limitações demonstraram, o que as manobras de Estados em torno da Lei do Mar demonstram, é que há um conjunto de preocupações que se prende menos com o preservar do “património comum da humanidade” e mais com o preservar da rentabilidade de uma indústria, a ditar regras e tempos. Mais, o facto de a “comunidade” internacional estar hoje ainda a lidar em grande medida com imperativos geopolíticos e geoestratégicos de 1982 demonstra algo importante. Que o complexo político industrial formado nos últimos quarenta anos – cujo maior feito terá sido o de consolidar a ideia de que geração e acumulação de riqueza são de alguma forma equivalentes a progresso social – , evidenciado na comunhão de interesses e perspectivas entre elites políticas e corporativas, patente na falta de ambição do Acordo de Paris e no diluir das promessas contidas na Lei do Mar, quer a todo o custo alimentar a ideia de que tudo pode continuar como dantes. Que a solução para o desastre ambiental causada pela exploração dos recursos do planeta é estender os limites dessa exploração. Que o consumo desenfreado e descartável central ao actual modelo pode ser expandido indefinidamente. Estas são as reais questões, evidenciadas nas muitas contradições centrais a esta temática, a que devemos dar resposta. Em vários artigos anteriores sobre política ambiental ou energética temos recorrentemente colocado enfoque sobre as escolhas tomadas em nosso nome, pelo que estas implicam, mas também pelo que revelam. A mineração em mar profundo é uma dessas escolhas, profundamente importante e reveladora. Ao contrário do que os seus promotores querem fazer crer, a mineração em alto mar não responde em última análise a um imperativo, necessidade ou oportunidade, mas sim a uma perspectiva e escolha. A perspectiva de que podemos explorar recursos indiscriminadamente e a escolha entre o que é difícil mas imperativo – reconhecer os custos sociais e ambientais do modelo actual e enfrentar de forma inclusiva, com realismo, visão e ambição os desafios que enfrentamos – ou, dando resposta ao desejo de uma minoria em perpetuar um sistema que produzindo níveis de desigualdade assombrosos – estima-se que, em 2017, cinco homens detenham tanta riqueza, como a metade mais pobre da população humana, 80% da qual vive com menos de 10 dólares por dia – ameaça a curto prazo transformar radicalmente para pior e de forma irreversível, este “património comum da humanidade”, o planeta em que vivemos.

Nos próximos artigos desta série iremos analisar a fundo de forma detalhada a mineração submarina e o seu contexto, bem como o papel que o Governo Português e a União Europeia querem reservar para os Açores nesse quadro.


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