Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: A governação crónica e o caso da Hepatite C
O recente episódio em torno dos doentes infectados com Hepatite C e o Sofosfovir, o fármaco que permite o tratamento da doença com eficácia acima dos 90%, revelou uma vez mais a natureza do governo e das multinacionais que dominam o mercado farmacêutico. Os media divulgavam no inicio de Fevereiro a morte de uma doente que esperava há meses pelo tratamento vital, dependente de um medicamento embrulhado em negociações e burocracias administrativas, que lhe poderia ter salvo a vida. Ao trágico desfecho aditou-se a triste ironia: segundo declarações do filho da vítima 1, a mesma terá sido contaminada em cirurgias e transfusões realizadas no SNS…
Entre protestos de familiares e portadores do vírus, denunciando o abandono e a negligência do governo, o ministro da saúde viu-se forçado a engendrar um golpe de ilusionismo moral. Tentou forjar um aparente conflito de interesses entre o Estado e a Gilead Sciences, a empresa que tem exclusividade plena na comercialização do medicamento. Em audição parlamentar, o ministro desculpava-se capciosamente, aludindo a um preço “monopolista”, afirmando que o acesso de milhares de doentes ao medicamento “só dependia da indústria”. Roçando o ridículo concluía “que a pressão sobre a indústria é zero”. Pois então! Não é o Estado que garante os privilégios comerciais à empresa, concedendo o direito à patente, proibindo a concorrência?… Não é a oferta assim resguardada, estabelecendo arbitrariamente o preço do medicamento?… Em discurso encapuzado, o ministro pretendia, atirando “areia para os olhos” da opinião pública, aliviar “pressão” sobre o Infamed, e ocultar a incumbência do governo na salvaguarda do monopólio logrado pela Gilead Sciences.
Durante as primeiras negociações com o Ministério da Saúde, empatadas durante meses, a farmacêutica norte-americana propôs vender o fármaco a 48.000 euros por cada tratamento de 12 semanas. Sendo o custo de produção do Sofosfovir não superior a 100 euros, a Gilead obteria assim um lucro que rondaria os 5000%. Entretanto, depois da morte de doentes, dos protestos, e das artimanhas do ministro, o acordo alcançado a “preço de amigo” vai permitir ao SNS pagar cerca de 25.000 euros por tratamento. Com um cliente acólito e fidelizado, e uma margem de lucro próxima dos 2500%, a Gilead Sciences encontra no Estado Português um parceiro respeitável! Menos sorte teve no Brasil ou na Índia quando viu a patente rejeitada 2, desobstruindo o mercado aos laboratórios de genéricos que disponibilizam um fármaco semelhante por menos de 100 euros…
Sem questionar o sistema de patentes na íntegra, a organização Médicos do Mundo contestou a patente do Sofosfovir, alegando que a sua composição “não é suficientemente inovadora” 3. Ora de suposta inovação se fazem grandes roubos e se esfola a sociedade com apanágios de progresso. Os direitos de propriedade intelectual e as patentes são um ardiloso estratagema para extrair rendas de produtos ou bens, que não sendo tecnicamente escassos, assim são concebidos através da lei. Dirão indignados, investidores filantropos e democratas auspiciosos: “tantos anos de investimento para descobrir um medicamento inovador têm de ter um retorno, certo?”. Errado! Boa parte da investigação científica que resulta numa patente é feita em parceria com instituições “públicas”, ou delas extrai conhecimento e apoio financeiro, melhor dizendo, é subsidiada com dinheiro confiscado aos contribuintes. Ao mesmo tempo as patentes são um claro entrave à investigação, pois desencorajam outros inventores que poderiam chegar aos mesmos resultados, e como é sabido, são muitas vezes engavetadas nas prateleiras dos laboratórios, em finória e lucrativa especulação.
A história da Gilead Sciences, semelhante à de outras corporações sempre bem relacionadas, da Big Pharma ou demais indústrias, é um exemplo que ilustra o denominado, passo a redundância, capitalismo “crónico”. Esta empresa de biotecnologia tem incorporado na sua administração notáveis figurões da política global, entre os quais, Ronald Rumsfeld, George Shultz ou o belga Etienne Davignon. Rumsfeld foi quadro da empresa entre 1988 e 2001, tendo sido nomeado presidente em 1997, cargo que desempenhou até encabeçar o Ministério da Defesa dos EU, durante a governação Bush. Figura sinistra da guerra com ilustre currículo de torcionário 4, o avultado accionista da Gilead lucrou milhões de dólares com o embuste montado à volta da “gripe das aves” e do Tamiflu. Este antigripal, de mérito duvidoso, foi desenvolvido pela Gilead nos anos 90, e os direitos de distribuição negociados com a farmacêutica suiça La Roche. Em 2005, quando se encontrava na liderança do Pentágono, o político republicano mobilizou esforços para que a epidemia fosse considerada “uma ameaça à segurança nacional” e o alarme pandémico alastrasse. Como resultado foram endossados milhões de comprimidos aos governos de mais de 60 países, as farmacêuticas multiplicaram os seus lucros e Rumsfeld fez crescer a sua fortuna especulando na bolsa a seu belo-prazer…
De perniciosos interesses corporativos, procedentes do conluio entre governos e o alto negócio, se estabelecem acordos internacionais e parcerias, como o TRIPS 5, supervisionado pela Organização Mundial do Comércio, ou o recente TTIP 6, celebrado entre a UE e os EUA. Estes cozinhados, de pé fincado no direito internacional e munidos de rebuscados instrumentos judiciais, vão buscar o que de pior existe no proteccionismo económico, a favor do alto negócio, claro! Para depois liberalizarem os mercados e louvarem a livre concorrência, como se o cartel fosse coisa natural… Assim se governam gordos investidores e demais batoteiros da finança, assim se fazem políticos de envergadura e renomeados gestores! É por esta estirpe que todos os dias somos assolados…
Notas:
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