
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Há uma história Queer em Portugal? (primeira parte)
25 de Abril de 2012 – Bloco queer nas comemorações do 25 de Abril em Lisboa. Nesse dia é ocupado um imóvel municipal na Rua de São Lázaro em solidariedade com a reocupação da Es.Col.A da Fontinha no Porto
É com ambição que nos lançamos neste propósito: organizar os traços principais de uma história da sexualidade militante em Portugal, no período da democracia, a partir da qual construir uma posição queer. Por queer 1 entendemos tudo aquilo, aqueles, que herdeiros do património imenso do feminismo, da revolta LGBT e da revolução sexual, se colocam em confronto com os dispositivos opressores, seja o casamento ou a escola, o trabalho ou a família. Por erótico – ou sensual ou desejo ou sexual – designamos o universo do toque e do olhar e seus imaginários assistentes. Numa frase, queremos que queer seja o termo que reivindica uma dimensão política para o erótico, nomeada por aqueles que o apreendem enquanto zona de guerra anticapitalista e contra o Estado.
Para uma pré-história feminista.
Para pensar a história da sexualidade em Portugal temos de começar pela história do feminismo. Talvez o momento mais emblemático desta luta seja a “queima de soutiens” no Parque Eduardo VII (Lisboa) em Janeiro de 1975. Uma queima que nunca existiu, garante quem esteve na primeira manifestação feminista do país e que foi injuriada por três mil machistas histéricos em contra-manifestação. Existiu, sim, a “queima” de símbolos da opressão feminina, que ao longo da história aprisionaram mulheres na sua condição de trabalhadoras sem salário – panos do pó, esfregonas, tachos e cama – e de outras instituições tão vigorosas que se confundem com a própria ideia de género feminino – a mãe e a esposa que a tornam mulher. Mas a desconstrução de género não se faz sem liberdade sexual. Destas lutas ficaram de fora as lésbicas e as prostitutas. A emancipação de género, laboral e reprodutiva, encarava mal o desejo como luta das lésbicas e o sexo como trabalho das prostitutas. Seria possível construir um movimento que se esquivava dos estigmas de “putas” e “fufas”, que pendiam sobre as feministas, em vez de os enfrentar?
O PREC é talvez o primeiro momento de afirmação de uma sexualidade crítica e radical, quando pela primeira vez surgem cartazes nas manifestações com referências à homossexualidade e à prostituição. Num momento em que as tensões de transformação da sociedade se centravam no desmantelamento das instituições do fascismo e na colectivização da economia, o campo revolucionário não incluía o que era considerado de âmbito privado – a sexualidade livre e o género inconformado. Emergem nesta altura as primeiras associações de mulheres focadas no direito à igualdade no trabalho, no combate à violência doméstica, no direito ao aborto e no acesso a meios contraceptivos e direitos reprodutivos que permitiram, de um ou outro modo, maior autonomia sexual. Se é certo hoje que o feminismo reivindica a emancipação de todas as pessoas – mulheres ou não – também o é que no período revolucionário ficaram de fora muitas mulheres. Alheias a um movimento que pretendia integrar-se na nova moral democrática, as lésbicas organizam-se inicialmente no movimento LGBT, que surge apenas no início dos anos 1990, onde formam colectivos autónomos de mulheres 2 que desenvolvem muitas vezes uma crítica ao feminismo dominante. Mas é também aí, nos primeiros colectivos, que ganha relevância um pensamento feminista que debate o facto do movimento LGBT ser geralmente encabeçado por homens, que dominam o espaço público e sexualizam o corpo masculino, com uma presença que reflecte muitas vezes a sociedade misógina e sexista.
Do Estado Novo à SIDA, a repressão como impulso.
Em 1980 surge um grupo homossexual – CHOR, Colectivo de Homossexuais Revolucionários – muito antes da formação de qualquer outro grupo LGBT em Portugal, composto por homens e mulheres que pretendiam uma alternativa à moral burguesa instituída, que “leva ao medo, ao ghetto, ao ciúme e à frustração”, segundo o seu manifesto. Afirmavam-se como diferentes e negavam a propriedade privada, afirmando que a luta pela liberdade devia incluir a luta pela liberdade sexual geral. Não era possível uma revolução económica e política sem uma revolução do comportamento humano. Este grupo organiza uma manifestação em que transporta uma Nossa Senhora de Fátima até à Assembleia da República, no fim da qual o grupo desaparece misteriosamente, extinguindo-se até hoje.
A criminalização da homossexualidade durante o Estado Novo, com penas de internamento até dois anos na Mitra (manicómio criminal), teve um importante papel na sua perseguição, com ressonâncias até ao período democrático. Aos olhos da lei e da moral da época, a homossexualidade era vista como indigência, tal como a prostituição, a mendicidade, a doença mental. A Mitra começou a ser desmantelada no pós-25 de Abril, mas efectivamente a homossexualidade só deixaria de ser crime em 1982, pelo que neste período temos ainda homossexuais institucionalizados. O que se sabe da época é que a polícia antes de efectuar detenções tentava a todo o custo extorquir dinheiro ou favores sexuais em troca do silêncio, pelo que as liberdades sexuais estavam bem marcadas pela classe. Quem tinha dinheiro para subornos e calar más-línguas podia viver a sua sexualidade, ainda que clandestinamente.
Cartaz da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA(1995) em que uma família heterossexual, branca e tradicional sugeria que a fidelidade era a melhor protecção contra a epidemia.
A crise da SIDA surgiu numa época em que não havia associativismo LGBT em Portugal. A Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA lança uma campanha em 1995 com o lema “Família: o princípio do fim da SIDA”. Os cartazes apresentam uma família heterossexual, branca e tradicional, que afirma a fidelidade como a melhor protecção contra a epidemia. Este ataque do Estado dirigido a pessoas que sentiam agora uma nova forma de estigmatização, com base no contágio, acabou por fomentar o desenvolvimento de organizações e associações, que abandonam a posição de vítima descriminada reivindicando um lugar socialmente pleno e desavergonhado.
É uma altura em que o Palmeiras é talvez o único espaço político de encontro na cidade de Lisboa (situado na sede do PSR), que serviu gente de origens múltiplas, bandas, grupos contra o serviço militar obrigatório, contra o racismo, tornando-se também um espaço de liberdade sexual, em particular homossexual, organizada a partir do GTH – Grupo de Trabalho Homossexual. Durante alguns anos este seria o espaço privilegiado para um movimento político que incluísse a revolução sexual na sua agenda e a partir do qual ganharam pela primeira vez visibilidade muitas reivindicações LGBT. Muitos militantes do GTH formaram e participam hoje em colectivos LGBT com peso no movimento social.
Albergue da Mitra, no Poço do Bispo em Lisboa, onde eram detidas todas as pessoas que o regime via como marginais (A Mitra nos anos 80, foto de Ana Esquível)
Direitos e assimilação: o cidadão LGBT e o marginal queer.
Na segunda metade da década de 1990, já no final do chamado epicentro da SIDA ( o primeiro caso em Portugal é diagnosticado em 1983) e com um movimento reforçado no combate ao estigma e na prevenção da doença, surgem as primeiras associações LGBT que transportam da Europa e da América do Norte um quadro de direitos civis. Podemos hoje observar que é também nesta época que se dá a formação do Bloco de Esquerda e onde a agenda LGBT passa a ser usada pelos partidos da esquerda parlamentar e associativismo LGBT como forma de diferenciação de uma direita parlamentar conservadora, fortemente marcada pelo machismo e homofobia – são as chamadas questões fracturantes.
Começa o período de normalização ou de assimilação – termos usados por grupos queer anarquistas dos EUA e Canadá. A agenda fracturante dos anos 1980 dá origem à agenda do associativismo LGBT formal, que origina propostas de lei formuladas pela esquerda institucional – facilmente colocadas na agenda e mediatizáveis. E é nesta pernada que a esquerda, tanto nas suas formações partidárias como associativas, tanto no campo LGBT como feminista, deixa de conceber o casamento, o trabalho, a instituição militar e policial e a escola, como instituições repressivas da sociedade patriarcal. É aqui que a hipótese queer ganha forma ao questionar a hierarquia de interesses que suportam o processo histórico do movimento feminista e LGBT. Torna-se claro que na decorrência do privilégio dado à luta por direitos civis, em detrimento de uma crítica social transversal, produzem-se vozes marginalizadas e novas discriminações.
A democratização da questão sexual sofre em 2004 um alerta que relança o debate sobre o género e a especificação de um novo tipo de ódio. No Porto, a transexual Gisberta é espancada, violada e atirada viva (amarrada) para um poço, onde morre. O crime fora cometido por um grupo de jovens que estavam ao cuidado de uma instituição católica de acolhimento de menores, com financiamento estatal. A morte de Gisberta questiona os limites do género binário, mas também a confusão insistente entre transfobia e homofobia. É este o momento em que o feminismo é obrigado a questionar a exclusão das suas fileiras de mulheres que não considerava como tais e que também não entravam na categoria de gays ou lésbicas. O ódio às pessoas trans atravessou todas estas décadas remetidas que estavam à marginalidade e à rua.
Todavia, neste crime, não são apenas as pessoas trans que ganham voz própria pelo ódio e indiferença a que estão sujeitas. A institucionalização de crianças e jovens pelo Estado, a forma como vivem e são educadas, a violência das suas vidas, poderia ser o ponto de partida para a reivindicação de uma mudança social radical. Acabámos contudo com as associações LGBT e feministas espectadoras de um julgamento. Acabámos com a direita a pedir penas de prisão mais implacáveis para crimes cometidos por menores. E podemos dizer que foi pouca a revolta contra os sistemas de institucionalização de menores e a forma como o Estado organiza a vida destas crianças e jovens. Como diria o juiz no julgamento de Gisberta, ao determinar que ela morreu por afogamento: “A culpa foi da água”.
De qualquer modo, as pessoas trans, que sempre haviam participado no movimento LGBT, adquiriram aos poucos nome próprio e começa-se finalmente a discutir o evidente: a norma rígida e binária que o Estado inscreve no género não é diferente da exploração inscrita na nossa vida, através do trabalho ou de outras formas de propriedade.
– A segunda parte deste texto tratará de temáticas como o aborto, o trabalho sexual, as experimentações queer no centro social RDA69 e de outras potências como o Exército de Dumbledore, Rabbit Hole e as Bixas Cobardes.
Fernando André Rosa, Miguel Carmo
Notas:
Deixe um comentário Cancelar resposta
6 People Replies to “Há uma história Queer em Portugal? (primeira parte)”
O lead do artigo não tem uma linguagem minimamente inclusiva. Para um texto sobre a história da cena queer em Portugal, fala-se muito no masculino.
“Aqueles”, “herdeiros”. É certo que o “x” e o “@” na linguagem escrita não são grande solução para a linguagem falada, mas poderiam ter optado por expressões de género neutro.
De resto, nada a apontar.