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Lendo: Comunidades indígenas sob ataque cerrado

Comunidades indígenas sob ataque cerrado

Comunidades indígenas sob ataque cerrado


Desde há mais de vinte anos que o novo presidente brasileiro tem andado a brandir ameaças às comunidades indígenas. Fiona Watson, uma das responsáveis da associação de defesa Survival International, coligiu algumas das declarações de Bolsonaro ao longo dos anos que são bem demonstrativas do encomendado programa destrutivo que a sua candidatura trazia no bojo, equiparáveis às que fez sobre outros assuntos.

Basta citarmos meia dúzia delas. «Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios» 1. «Os índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?» 2. Mas o racismo de Bolsonaro remete para desígnios muito concretos: «Não tem terra indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazónia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio». «[Reservas indígenas] sufocam o agronegócio. No Brasil não se consegue diminuir um metro quadrado de terra indígena» 3.

Em 2016, na preparação da sua campanha, já se tinha mostrado muito declarativo. Em Junho, num vídeo do Correio do Estado, anunciou: «Essa política unilateral de demarcar a terra indígena por parte do Executivo vai deixar de existir, a reserva que eu puder diminuir o tamanho dela eu farei isso. É uma briga muito grande que você vai brigar com a ONU». «Em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros» 4.

Em 2017, a 3 de Abril, no Clube Hebraico do Rio de Janeiro, trombeteou: «Não vai ter um centímetro quadrado para reserva indígena ou para quilombola [território destinado a descendentes de comunidades de escravos africanos]». E foi repetindo essas promessas eleitorais de forma cada vez mais vincada: «Pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência da República) não vai ter dinheiro para ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola» 5.

De forma complementar, trouxe para a ribalta mediática o velho programa dissolvente anterior à Constituição de 1988: «Vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso, incorporando índios, tá certo, às Forças Armadas». E nesse conjunto de alardeadas medidas estava também incluído o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI: «Se eleito, eu vou dar uma foiçada na FUNAI, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais» 6.

Floresta amazónica em mercadoria

Bolsonaro é o rosto eleito de dois grandes e poderosos partidos informais, que actuam fora e dentro do Congresso: os chamados «ruralistas» (latifundiários, donos de grandes empresas do agronegócio, do sector madeireiro, da mineração, do imobiliário) e os evangélicos, cujas igrejas «missionárias» se têm espalhado por todo o Brasil. É a estes dois partidos que ele deve grande parte da sua bem-sucedida candidatura. Na agenda está o apoderamento geral da Amazónia e a sua mercantilização, coisa que faz do seu governo uma grave ameaça a todo o planeta. Ora, é nas terras indígenas que a floresta está mais preservada. E como o direito ao usufruto exclusivo das terras ancestrais é garantido pela Constituição de 1988, «os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria». As terras indígenas são terras públicas, pertença do Estado brasileiro, e, como tal, não são mercadoria. Como refere esta jornalista de investigação, «tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazónica em mercadoria. (…) Por uma razão bastante objectiva: é na Amazónia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais». 7

Vem de longe, também no Brasil, o modo de encarar os indígenas como «entraves ao progresso», questão que nunca deixou de ser estratégica, mas que hoje, no contexto das catástrofes e disfunções climáticas, passou a ter um peso decisivo e proporções demenciais. É de lembrar aqui que a associação sem fins lucrativos Survival International foi fundada em 1969, em Londres, na sequência dos massacres levados a cabo contra os indígenas do Brasil em nome do «desenvolvimento económico», em plena ditadura militar. Em ditadura ou em democracia, o totalitarismo do «desenvolvimento» é lei omnipresente.

Na situação brasileira, uma questão-chave continua portanto a ser a ocupação das terras indígenas. Após o fim da ditadura militar, em 1985, as demarcações dessas terras passaram a ser um aspecto essencial das lutas pela sobrevivência e pelo melhoramento das comunidades indígenas. As homologações dessas demarcações territoriais por gestão presidencial são um bom indicador do processo que conduz ao actual programa exterminador de Bolsonaro. Entre o governo de José Sarney (1985-1990, 13 homologações por ano) e o de Michel Temer, a média anual de homologações chegou a zero, acrescentando-se a isto as práticas conducentes à eliminação de terras anteriormente demarcadas. O governo durante o qual houve o maior número de homologações foi o de Fernando Collor de Melo (1991-1992, 56 por ano). Depois, esse número foi diminuindo, inclusive nos governos do PT (10 por ano no governo de Lula, 5,25 no de Dilma Rousseff).

As disputas violentas de terras, com um organizado recurso a mercenários e às forças armadas oficiais, continuam na ordem do dia e irão certamente acentuar-se na governação de Bolsonaro. Apesar da enorme desproporção de forças, as comunidades indígenas não estão dispostas a abandonar a sua luta pela preservação das suas culturas e modos de vida. Convindo lembrar que esta luta se mantém há mais de quinhentos anos, que vem dos tempos coloniais e que o Brasil continua assente em estruturas fundiárias criadas no século XVI pelas desgraçadamente famosas «capitanias» dos ocupantes portugueses.

Texto por Júlio Henriques

 

Notas:

  1. Correio Braziliense, 12 de Abril de 1998.
  2. Campo Grande News, 22 de Abril de 2015.
  3. Campo Grande News, 22 de Abril de 2015.
  4. Congresso, 21 de Janeiro 2016.
  5. Estadão, 3 de Abril de 2017.
  6. Citado na página web de Indigenistas Associados, 1 de Agosto de 2018.
  7. Eliane Brum, El País – Brasil, 7 de Novembro de 2018.

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Jornal Mapa

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