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Lendo: O regresso das florestas zombies

O regresso das florestas zombies

O regresso das florestas zombies



O sonho das empresas de celulose de tornar Portugal um país de grandes plantações de eucalipto, com clones da mesma idade, sujeitas ao mesmo regime, num manto verde a perder de vista, daquelas geridas por drones, em que nem é preciso lá por os pés, insiste em não se concretizar em Portugal. O sonho dá lugar a florestas zombies. Qualquer pessoa que circule pelo norte e centro do país as encontra – plantações de eucaliptos queimados, mortos-vivos a regenerar parcialmente, sem vontade própria e sem futuro. Como é que árvores tão amadas, trazidas à vida pelas mãos cuidadosas da engenharia genética, cheias de potencial, são tão descuidadamente entregues a pessoas incapazes de as proteger de incêndios recorrentes?

No debate público, o culpado número 1 de todos os erros da floresta, sendo que por floresta se entende aqui o que dela fizeram – monoculturas de árvores sob a disciplina produtiva capitalista – é o pequeno proprietário absentista. Que bode expiatório tão conveniente, culpar quem não está lá e que não se sabe quem é. Donos e donas de meio hectare, seriam a principal pedra na engrenagem a impedir a realização do sonho verde. Vai-se naturalizando a ideia de que há que dar as terras a quem pode cuidar delas. E quem melhor pode cuidar delas do que quem tem o poder de investir?

Pouco a pouco, naturaliza-se também a ideia de que o sonho das empresas de celulose tem de ser um desígnio nacional. Como nos lembram vezes sem conta, são os eucaliptos que ajudam a equilibrar a nossa balança comercial. O escudo de Portugal contra a austeridade é feito de eucalipto. Devíamos fazer do eucalipto a nossa árvore nacional, a base dos nossos perfumes, e ver se a conseguimos cozinhar. As pombas modernas da paz não levam ramos de oliveira, mas sim ramos de eucalipto. Podíamos aproveitar a oportunidade e fazer parques temáticos com coalas, aborígenes e o Crocodilo Dundee. Em terras que já não dão pão, se o eucalipto é que nos põe o pão na boca, há que educar o povo para a sua importância.

O que me intriga é que quando olho para uma serra inteiramente coberta de eucaliptos até às linhas de água, nunca vejo as terras incultas dos proprietários absentistas. Que fantástica capacidade de coordenação! Somos um país de telepatas que conseguimos comunicar com pessoas desconhecidas? Como é que esse suposto mapa fragmentado de tanta pequena propriedade se torna num manto verde ininterrupto? Que magia! Mas quem gere estas árvores? Será que cresceram espontaneamente? Se é o caso, o eucalipto devia ter estatuto legal de espécie invasora. Para bem da nossa economia, é melhor criar um novo estatuto para o eucalipto: o de árvore mágica, capaz de se gerir a si mesma. Devemos também dotá-la de personalidade jurídica para que possa passar recibos e faturas quando se vende aos compradores. Doutra forma, os proprietários absentistas desconhecidos estariam a ser roubados por quem lucra com os eucaliptos que nascem nas suas terras.

Apesar das suas propriedades mágicas, o eucalipto continua a arder. Os fazedores de zombies praticam todas as formas de injustiça ambiental. Não restauram os espaços florestais, não compensam os danos ambientais causados e a perda de serviços dos ecossistemas, nem previnem os riscos inerentes às plantações florestais, como os incêndios, com a consequente perda de vidas humanas. Não têm em conta a vulnerabilidade económica e social das populações das quais abusam, a violência social e os conflitos gerados pela ocupação de terras comuns e daqueles que não podem defender a sua propriedade contra terceiros, nem a perda irreversível de biodiversidade. Tudo em nome do abastecimento de matéria-prima a baixo preço.

Mas o baixo preço não chega. É preciso qualidade. E a carne queimada dos zombies não serve para papel certificado. Quem serão os provedores capazes de assegurar as necessidades do mercado e, consequentemente, de todos nós, povo comedor de eucaliptos? O pequeno proprietário, absentista ou não, tem os dias contados. Ou está morto, ou já morreu e não sabe. Foi eliminado pela seleção natural do mercado por não se organizar para produzir eucaliptos certificados.

As empresas de celulose, direta ou indiretamente, beneficiaram de dinheiro público, mas os proprietários privados terão de ser capazes de pagar os custos dos eucaliptos, ou perecer. O mundo não será dos pequenos. A Uber do eucalipto não será de proprietários particulares, será de acionistas. Os que agora comem pão de eucalipto, comerão migalhas, ou pó, ou nada. E enquanto houver injustiça ambiental, as florestas zombies vão surgir, regressando após cada ciclo de exploração intensiva e abandono.

Enquanto os zombies não regressam, os vivos ocupam temporariamente a terra. Nascem alguns carvalhos, sobreiros e acácias, e já temos floresta no CORINE Land Cover. Por vezes alguns eucaliptos escapam e fazem vida com as outras espécies. Talvez aí possam ter um papel na nossa vida coletiva.

Rita Serra


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Jornal Mapa

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