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Lendo: As Pontes de Istambul

As Pontes de Istambul

As Pontes de Istambul


Em Istambul todas as pontes ligam literalmente a Europa e o Médio Oriente, simbolizando a rica e diversa multiculturalidade desta região. As pontes representam uma metáfora para esta zona “à beira de um ataque de nervos”.

A 15 de Julho de 2016 teve lugar um acontecimento que as autoridades turcas depressa apelidaram de “golpe”, com algumas manobras militares a fecharem uma das pontes de Istambul e a atingirem a sede da unidade especial de polícia e o Parlamento, em Ankara. Ironicamente, durante a noite do golpe, foi através da aplicação vídeo em directo “Facetime” que o Presidente Erdogan apelou na televisão para que as pessoas saíssem às ruas para “proteger a democracia”. O apelo foi ouvido e rapidamente se tornou visível que os “traidores” não teriam apoio público. Começa a “caça às bruxas” dos supostos aliados de Fethullah Gülen, clérigo muçulmano exilado nos EUA, que passou de aliado de Erdogan a bode expiatório para o golpe e para as acções vingativas que se seguem: despedimentos, perseguições, prisões e torturas. Só na noite do golpe morreram cerca de 250 pessoas, incluindo civis e militares. Ainda na ponte alguns soldados foram mortos e espancados pelos “defensores da democracia”, cidadãos anónimos, apoiantes de Tayyip, sob o olhar impávido da polícia.

Como se chegou aqui? Desde 2012 que o crescimento económico abrandou. As incertezas eleitorais de 2013, 2014 e sobretudo 2015, os acontecimentos nos países vizinhos e a forma como o governo lidou com vários escândalos de corrupção tiveram impacto negativo tanto na confiança do sector privado e dos investidores como nas instituições Europeias.

A nível político, o partido dominante é o AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento) cujo líder Recep Tayyip Erdogan foi primeiro-ministro durante 12 anos e se tornou Presidente em Agosto de 2014. O agravamento de violações várias de Direitos Humanos, a intolerância à oposição partidária, o número crescente de jornalistas presos, a falta de liberdade de imprensa, a violência e repressão das autoridades, associada a escândalos de corrupção e exibições de megalomania (ex: o palácio presidencial em Ankara), têm marcado os últimos anos do panorama sócio-político turco.

Com a revolta de Gezi Park em 2013 (confrontos que alastraram pelo país numa onda de solidariedade, libertação e repressão ímpares) o governo acentuou uma política de censura na internet (bloqueio de acesso a redes sociais, Twitter, Youtube) e nos media (vários órgãos de comunicação foram encerrados e jornalistas presos ou alvo de processos judiciais).

Desde Junho de 2015 que o país tem sido um dos alvos mais recorrentes de atentados terroristas, 15 ataques de forte impacto, 330 vítimas mortais.

Num artigo online da Roar Magazine, o autor Joris Leverink, correspondente em Istambul, sintetiza de forma assertiva a mudança social que está a acontecer na Turquia pós-golpe. A máquina de propaganda está bem oleada, pois logo a seguir ao golpe o slogan Hakimiyet milletindir, que significa “a soberania pertence à nação” pode ser visto em todo o lado. Posters em paragens de autocarro, semáforos, passagens de peões, billboards e anúncios na TV nos transportes públicos.

Desta forma é dada a percepção de que “o povo é quem mais ordena”, fazendo com que os cidadãos se sintam parte de uma grande nação democrática ao fazê-los acreditar que foram eles que controlaram o golpe em curso. As razões do golpe militar ainda estão obscuras, levando a crer que o mesmo terá sido preparado para justificar medidas adicionais de segurança, mais perseguições, despedimentos, prisões.

Tayyip Erdogan tem vindo a polarizar o país, a instigar os seus cidadãos contra quem não segue as suas premissas, nomeadamente os Curdos, utilizando a “guerra ao terrorismo” como argumento.

No dia 1 de Setembro, Dia Internacional da Paz, o ministro do Interior, Efkan Ala, demite-se. Durante os seus últimos dois anos e oito meses no governo, ocorreram 17 atentados, provocando a morte de 580 pessoas.

Mais 50.000 funcionários públicos foram despedidos nos últimos dias (incluindo gendarme, polícia, guarda costeira, guardas prisionais, instituições religiosas, governadores-civis, conselho superior de educação, ministério da educação, saúde, segurança social…), no seguimento de uma limpeza pós-golpe que tem atingido todas as áreas do sector público com particular incidência na educação, forças de segurança, justiça e religião.

Curiosamente os militares e forças policiais detidos para investigação, ou mesmo despedidos, vinham a ser elogiados pelo governo pelo seu desempenho na luta contra os curdos e contra a desobediência civil.

E por falar em pontes, a terceira ponte de Istambul, a mais larga ponte suspensa do mundo, foi inaugurada recentemente poucos dias depois do ataque brutal a um casamento em Gaziantep. Foi nomeada Yavuz Sultan Selim em homenagem ao sultão que, conhecido como um dos mais cruéis, massacrou milhares de Alevis (minoria religiosa).

Entretanto, o ministro turco para os Assuntos Europeus, Ömer Çelik, esteve nos últimos dias em Lisboa, onde reuniu com Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Segundo a SIC Notícias o ministro afirmou: “Prezamos valores como a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos, e queremos continuar a pautar-nos por eles. Porque não então abrir os capítulos 23 e 24 das negociações com a Turquia, tratando-se nomeadamente de questões basilares e nas quais se encontra uma questão muito importante, da liberdade de imprensa”.

Após um almoço de trabalho conjunto, nas declarações finais, o ministro turco usando os refugiados como mercadoria de troca, reafirmou ainda a intenção de “resolver a questão da liberalização dos vistos o mais breve possível”, ameaçando que, caso contrário, a Turquia teria de tomar medidas em relação ao processo de readmissão, uma vez que “a questão da liberalização dos vistos e da readmissão [de refugiados em território da Turquia] estão intimamente ligadas”.

“A União Europeia pediu à Turquia que revisse a sua lei sobre a luta contra o terrorismo, pediu mesmo que a alterasse. Como é que isso é possível considerando que a Turquia, apenas com o Iraque e a Síria, tem 1.295 quilómetros de fronteiras”, questionou ainda Ömer Çelik para sustentar a recente operação militar desencadeada na Síria, supostamente contra as forças ‘jihadistas’, mas na prática só contra as forças curdas. O representante turco num acto de malabarismo político conseguiu ainda relacionar a questão dos vistos para os cidadãos turcos com o terrorismo: “Alterar a lei contra o terrorismo quando na realidade estamos a defender a UE… É certo que em cooperação com o Conselho da Europa temos avançado neste campo mas é fundamental que esta questão da liberalização dos vistos possa ser resolvida o mais brevemente possível.”

Pontes para a Síria

A Turquia é uma zona fundamental no conflito sírio e no equilíbrio do Médio Oriente e da Europa. Os acontecimentos dos últimos meses têm acelerado a guerra civil que decorre no sudeste da Turquia. Nos últimos 30 anos morreram 40.000 pessoas, sobretudo curdos, neste confronto entre o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e as autoridades turcas.

A recente mudança de estratégia na Síria, com a entrada de forças militares turcas permitida pelos EUA, altera a perspectiva sobre o Médio Oriente obrigando todas as forças presentes a reposicionar-se estrategicamente, incluindo os russos, SDF (Forças Democráticas da Síria, que incluem as forças curdas do YPG e YPJ), o exército sírio e o FSA (Exército Livre da Síria).

Nos últimos meses antecedendo a entrada em território Sírio as forças turcas movimentaram-se de sudeste para nordeste, para as zonas mais montanhosas onde está o PKK. Florestas e aldeias estão a ser incendiadas, mas agora, ao contrário dos anos 90, a população curda fica e resiste. Não se dirige para o ocidente, para as grandes cidades, porque já sabe o que a espera: mais perseguição e terror.

A atitude ocidental e os parâmetros dúbios utilizados na análise e intervenção no Médio Oriente contribuem para o agravamento desta situação. Não esquecendo que a Turquia é uma zona geoestratégica essencial na questão dos refugiados, a União Europeia colocou-se numa situação perigosa e de dependência ao apoiar o estado turco quando anuncia que lhe seriam enviados 3 mil milhões de euros para ajuda aos 2,2 milhões de refugiados sírios que se encontram no seu território, abrindo alas à recente chantagem de Erdogan com os refugiados.

De acordo com Dilar Dirik, activista feminista curda, investigadora no Departamento de Sociologia, em Cambridge, a designação de terrorista, frequentemente demoniza um dos lados do conflito. Neste caso em concreto, no conflito Turquia versus PKK, de um lado o segundo maior exército da NATO, do outro um movimento armado de libertação. Esta estigmatização traz consigo a criminalização de um povo, ameaçando os seus direitos fundamentais.

Estas “listas negras”, em que se classificam, incluem ou retiram nomes de acordo com agendas políticas, e não de acordo com valores ou princípios éticos, deixam muito a desejar. Incluir num mesmo grupo, ISIS e PKK, ignorando o princípio de auto-determinação dos povos, como designado na Carta das Nações Unidas, e a legitimidade de resistência, não fazendo distinção moral entre uns e outros revela-se injusto e imoral.

O YPG e o YPJ são exércitos independentes de Rojava (zona semi-autónoma criada em 2011) constituídos maioritariamente por populações curdas no norte da Síria e têm vindo a combater por liberdade e igualdade.

As autoridades turcas vêem Rojava como ameaça à segurança nacional, pois temem que o efeito dominó se espalhe pela região e fortaleça o processo de auto-determinação no sudeste da Turquia. Talvez por isso mesmo, as forças turcas se estejam a movimentar no território nacional e também em Jarablus, já na Síria.

O YPJ, exército feminino, conta com cerca de 15.000 elementos (dados de 2015), aproximadamente 35% do total de combatentes. Mulheres curdas que combatem o segundo maior exército da NATO, o da Turquia, com a sua estrutura altamente masculinizada e um presidente que refere que as mulheres devem ter pelo menos três filhos para serem completas. Combatem também o regime iraniano que desumaniza as mulheres em nome do Islão, o regime sírio, cujo exército utiliza frequentemente a violação como parte de estratégia de guerra, tal como os jihadistas.

Acima de tudo, combatem o patriarcado instituído na própria comunidade curda. Contra os casamentos com crianças, casamentos forçados, a “cultura” da violação, as mortes por honra, a violência doméstica.

Sozda, uma comandante do YPJ refere que “Nós não queremos que o mundo nos conheça por causa das nossas armas, mas pelas nossas ideias. Nós não somos apenas mulheres que combatem a ISIS. Nós lutamos para que se mude a mentalidade da sociedade e para mostrar ao mundo do que somos capazes.”

O que sustenta esta revolução é a ideologia que a suporta. O seu objectivo fundamental é a constituição de um sistema de confederalismo democrático(1), baseado na solidariedade, igualdade de género, diversidade cultural, ecologia, economia comunitária, fazendo também parte deste complexo sistema a auto-defesa.

Os eventos acima descritos são apenas alguns exemplos da tensão e caminho perigoso que se está a percorrer, temendo que o verdadeiro golpe esteja a ser feito no dia-a-dia. Assistir a tais transformações políticas na sociedade turca a ritmo tão acelerado pode vir a ser devastador num futuro próximo.

A esperança existe porque também uma revolução está a acontecer às suas portas.

Um exemplo para o Mundo. De resistência, de esperança, de igualdade, de sustentabilidade. Para todos. Resta-nos acreditar na solidariedade, na partilha da herança cultural em comum, riqueza musical, gastronómica, linguística, humana. Gentes que precisam muito de se continuar a conhecer. Para não terem medo. Gentes que precisam de se perdoar. Tantas gentes tão diferentes e com tanta História por contar. Gentes que cruzam as Pontes de Istambul.

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Notas:
(1) A ideologia de confederalismo democrático tem as suas origens em Abdulah Öçalan, líder histórico do PKK, preso desde 1999 na Turquia, condenado a prisão perpétua. O PKK, fundado em 1978, inicia uma guerrilha contra o Estado Turco em 1984, resultando num conflito que provocou cerca de 40.000 mortos até hoje.

Referências:
Leverink, J., Fabricating illusions of people power in post-coup Turkey, in Roar Magazine, Agosto 2016

Dirik, D. (2015), The Women’s Revolution in Rojava: Defeating Fascism by Constructing an Alternative Society

Wedding Bombing is the Latest in a Series of Deadly Terror Attacks in Turkey, The New York Times, Agosto 2016

Ministro turco defende adesão à UE e liberalização de vistos para cidadãos turcos, Sic Notícias, 06/09/2016

 

Texto de Sofia Luís
Fotos de Yann Renoult

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Written by

Cláudio Duque

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